O que é o 8 de março? Por que estamos aqui? De onde vem?
A história do dia internacional das mulheres está atrelado ao incêndio na fábrica norte-americana em 1957 que matou cerca de 130 mulheres, trazendo à data um teor simbólico. Esta história, ainda que bonita, pinta a imagem de mulheres fortes, guerreiras e corajosas, e além de romantizar a luta e a sobrecarga feminina, apaga os movimentos das trabalhadoras ao redor do mundo.
Em 1910, durante a II Conferência Internacional das Mulheres em Copenhague, na Dinamarca, Clara Zetkin, feminista marxista alemã, propôs que as trabalhadoras de todos os países organizassem um dia especial das mulheres, cujo primeiro objetivo seria promover o direito ao voto feminino.
No ano seguinte, em 25 de março, ocorreu um incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist, em Nova York, que matou 146 trabalhadores — incluindo 125 mulheres, em sua maioria mulheres imigrantes judias e italianas, entre 13 e 23 anos. A tragédia fez com que a luta das mulheres operárias estadunidenses, coordenada pela histórica União Internacional de Mulheres da Indústria Têxtil crescesse ainda mais, em defesa de condições dignas de trabalho.
As russas soviéticas também tiveram um papel central no estabelecimento do 8 de março como data comemorativa e de lutas. Por “Pão e paz”, no dia 8 de março de 1917, mulheres tecelãs e mulheres familiares de soldados do exército tomaram as ruas de Petrogrado (hoje São Petersburgo). De fábrica em fábrica, elas convocaram o operariado russo contra a monarquia e pelo fim da participação da Rússia na I Guerra Mundial.
A revolta se estendeu por vários dias, assumindo gradativamente um caráter de greve geral e de luta política. Ao final, eliminou-se a autocracia russa e possibilitou-se a chegada dos bolcheviques ao poder.
A história real do 8 de março é totalmente marcada pela história da luta socialista das mulheres, que não desvincula a batalha pelos direitos mais elementares — que, naquele momento, era o voto feminino — da batalha contra o patriarcado e o sistema capitalista
Ao longo dos anos, houve uma articulação histórica para esvaziar o conteúdo político do 8 de março, transformá-lo em uma data simbólica inofensiva e em um nicho de mercado, apagando sua origem operária.
No dia da mulher, compram-se flores e presentes para as mulheres. Tentam esconder o conteúdo subversivo do significado desse dia, que é questionar o patriarcado. Tentam esconder que a luta das mulheres sempre esteve vinculada à luta socialista, perigosa para o status quo.
MOVIMENTO DAS MULHERES
Não há como falar do dia internacional das mulheres sem falar sobre o movimento das mulheres – feminismo. O que é feminismo?
Ao contrário do que se pensa, as pautas do movimento feminista não englobam “igualdade de gênero”, ou “liberdade sexual”, “escolha” e muito mesmo o famoso “empoderamento”. O movimento feminista é e sempre foi um movimento coletivo de mulheres para mulheres, que busca a emancipação da classe feminina a partir do desmantelamento das estruturas patriarcais. E tendo isso em vista, é de extrema importância lembrar que o feminismo tem, em sua própria definição, um teor anticapitalista e anti racista.
Como, então, poderíamos buscar “igualdade” dentro de um sistema que se sustenta na desigualdade? Como poderíamos ter igualdade de gênero, quando o sistema de gênero é, por definição, uma hierarquia?
A resposta é que não podemos. Não há como emancipar mulheres sem destruir as estruturas – criadas, cultivadas e mantidas por homens e para homens – que são hierárquicas e se alimentam das desigualdades.
COMO FALAR DE ESCOLHA?
Existe a ideia superficial de que feminismo é sobre escolha – uma ideia bem disseminada pelo sistema liberal, afinal, seu teor individualista tira o foco das necessidades coletivas e contribui para o fortalecimento do capitalismo. No ocidente, vivemos sob a ilusão da escolha, criada pelo pós-modernismo neoliberal a partir de discursos meritocráticos implementados em escolas, universidades e no mercado de trabalho.
Mas como falar de escolha quando a socialização feminina adestra meninas para a submissão desde o início de suas vidas?
Meninas recebem um marcador social ao nascer – tem suas orelhas mutiladas em um rito cultural que as identifica enquanto fêmeas. Apenas bebês meninas têm suas orelhas furadas, porque é assim que elas são identificadas enquanto meninas e é isso que determina a forma como serão recebidas pelo mundo. A partir deste marcador social, elas recebem um determinado tratamento, que envolve o culto à estética (com brinquedos como Barbie), o dever de cuidado dos filhos (com bonecas), o serviço doméstico (com panelinhas, cozinha de brinquedo, vassourinha, etc).
Senta direito, feche as pernas, penteia esse cabelo, ajeita essa fita, use sapatos bonitos, aprenda a se maquiar, aprenda a cozinhar, lave a louça, arrume a bagunça do seu irmão, isso não é coisa de menina, você deve ser dócil, menina agressiva é feio, fala baixo, fique quieta, não reclame, fique sempre depilada…
Enquanto isso, meninos se exercitam livremente jogando bola e aprendem a dominar através do incentivo a brincadeiras de lutinha e competições, aprendem a perseguir carreiras quando ganham kits de ciência e blocos para construção.
Como falar que mulheres escolhem a maternidade, quando não há educação sexual, quando não há acesso a métodos contraceptivos, quando não há acesso a aborto? Quando 1 em cada 4 mulheres é vítima de violência obstétrica e mulheres morrem por aborto clandestino?
Como falar que mulheres escolhem a vida de dona de casa, quando 50% das mulheres são demitidas ao voltarem da licença maternidade?
Não vamos falar de escolha. Vamos falar de estatísticas:
- 67,7% das vítimas de pedofilia são MENINAS;
- Mulheres ganham, em média, 23% menos do que homens;
- Mulheres compõe 70% da população em situação de pobreza no mundo;
- No Brasil, 5,5 milhões de crianças não possuem o nome do pai no registro;
- Há cerca de 11 milhões de mães solo no Brasil;
- 85,7% das vítimas de estupro no Brasil são mulheres;
- 50% das mulheres brasileiras assumiram a tarefa de cuidados de alguém na pandemia;
- Mais de 4 milhões de mulheres brasileiras foram afastadas do mercado de trabalho durante a pandemia;
- Apenas em 1993 a ONU estabeleceu estupro marital como uma violação de direitos humanos, e apenas em 2009 passou a ser considerado um crime contra a mulher;
- Até 2016, não existia banheiro feminino no Congresso Nacional
- Até 2021, agressores podiam usar a Legítima Defesa da Honra para justificar crimes de violência doméstica e feminicídio;
- O Brasil é o único país do mundo que ainda tem em vigor a Lei da Alienação Parental, que penaliza mães ao denunciarem abuso por parte dos pais;
- Cerca de 321 mil alunas estudam onde não têm banheiro em condições de uso.
- No Brasil, 1,24 milhão de meninas não têm à disposição papel higiênico nos banheiros das escolas. Entre essas meninas, 66,1% são pretas/pardas.
- Uma em cada quatro meninas no Brasil faltam à aula por não possuírem absorventes, e dessas, 50% nunca falaram sobre o assunto na escola.
- Mulheres em regime de cárcere privado utilizam miolo de pão, jornal, pedaço de papel higiênico, panos e até papelão para conter o fluxo sanguíneo durante o ciclo menstrual devido à falta de acesso a produtos de higiene íntima adequados.
Podemos ainda falar sobre o mercado do tráfico sexual, sobre como a indústria pornográfica lucra em cima do estupro de mulheres vulneráveis e sobre como a maioria das mulheres prostutuídas encontra-se em estado de extrema vulnerabilidade. Poderíamos entrar na questão materna e falar sobre a jornada dupla – muitas vezes tripla – que mulheres são submetidas. Afinal, quando conseguimos escapar do destino da maternidade compulsória, ainda somos empurradas para exercer o trabalho de cuidado – seja de nossos companheiros, famílias ou até pets.
Não há escolha quando não há opção, e este é o ponto que o feminismo mainstream, manipulado pela mídia e pelos ideais capitalistas, esconde quando nos vendem cartões, flores e chocolates e tentam nos convencer de que nudez é sobre liberdade sexual enquanto colocam nossos corpos como objetos à venda.
Não há escolha quando há a romantização da compra, venda e aluguel de nossos corpos e nossa capacidade reprodutiva – mas por que será que mulheres ricas não recorrem a prostituição, pornografia e barriga de aluguel?
E no meio disso, ainda há o questionamento que surge com os movimentos pós modernos, que relativizam as violências e opressões direcionadas a pessoas do sexo feminino: o que é mulher? Quem é mulher? Quem pode ser mulher? Afinal, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, disse Simone de Beauvoir. E a partir da apropriação desta única frase, retirada de seu contexto, movimentos liberais vem buscando o desmonte dos direitos femininos, concedendo a homens acesso a espaços separados por sexo a partir de políticas de auto identificação. Presídios, abrigos, banheiros públicos, vestiários – todo e qualquer espaço separado por sexo – torna-se amplamente acessível para qualquer pessoa que se auto identifique enquanto mulher. O resultado disso: aumento exponencial de casos de abuso de cunho sexual em espaços antes seguros.
Como se não bastasse o apagamento da nossa classe através de violências sistemáticas, a estratégia de opressão do patriarcado busca atuar dentro de nosso próprio movimento para que sejamos apagadas enquanto classe política. E estão conseguindo, pois nós mesmas, por conta da nossa socialização, estamos permitindo.
Esta data, portanto, não é de comemorações e presentes. É uma data para que possamos fortalecer nossos laços enquanto classe, para que possamos repensar a nossa socialização e trabalhar coletivamente e de forma estratégica a fim de derrubar as estruturas que mantêm o patriarcado. Este não é um dia para falar sobre nenhuma outra questão que não seja as pautas feministas. Este dia não é para ser romantizado. Este é um dia de luta.
Não há escolha quando não há opção – que isso seja amplamente entendido para que possamos direcionar nossos esforços para um dia falarmos, de fato, sobre escolhas.
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.”