10 Mentiras que o Feminismo Liberal te Conta – E Você Acredita

Por Clarissa Roldi

10 Mentiras que o Feminismo Liberal te Conta – E Você Acredita

O Feminismo Liberal, também conhecido como Feminismo Mainstream, é a vertente que a maioria das pessoas tem contato – trata-se  do feminismo abordado na grande mídia, por artistas, por influencers etc. O Feminismo Liberal que está majoritariamente nas ruas é aquele que tem voz dentro da esquerda. Muitas – se não a maioria – das mulheres ditas feministas, conhecem o conceito de feminismo a partir do viés liberal, porque, afinal de contas, este é o feminismo “acessível”. 

Apesar de algumas pautas abordadas dentro do movimento liberal serem interessantes, é um movimento raso; ou seja, que não busca se aprofundar em questões importantes para o avanço nas pautas dos direitos das mulheres. O discurso liberal é atrativo e cativante, pois se camufla por baixo de uma capa de aceitação e inclusão, levando-nos a acreditar que se trata de um movimento benéfico para a luta das mulheres e que milita em prol dos nossos direitos. No entanto, ao analisarmos o discurso disseminado pelo movimento liberal de forma aprofundada, é possível perceber que ele não é apenas raso, mas dissimulado: não passa de uma narrativa muito bem elaborada para engajar a nós, mulheres, e nos conduzir em um caminho que nos dá a ilusão de que tem nossos interesses em mente. 

O presente texto busca analisar o discurso liberal, por que este passa credibilidade e quem ele realmente beneficia. 

  1. “Meu corpo, minhas regras”

Um bordão muito utilizado pelo movimento liberal que pode parecer potente – quase como um grito de guerra – afirmando que mulheres são donas de si. O problema, como absolutamente tudo que cerca a vertente liberal do feminismo, é a superficialidade da ideia: Não há um aprofundamento no que realmente significam essas “regras”, de onde vem e por que existem. 

A mensagem que o bordão busca passar é a de que mulheres tem total liberdade de escolher o que fazem com seus corpos – usar a roupa que deseja usar, transar com quem quiser, usar ou não salto/maquiagem, se submeter ou não a procedimentos estéticos, como plástica e depilação, ou até mesmo entrar na prostituição, se assim escolherem. No entanto, a disseminação desta ideia não questiona a origem dessas “escolhas” e muito menos leva em consideração suas consequências dentro da estrutura misógina da atual conjuntura social. 

O lema “meu corpo minhas regras” ignora o fator da socialização, no qual mulheres são condicionadas, desde seu nascimento, a se perceberem como insuficientes, a atrelarem sua auto estima à aprovação do olhar masculino e à auto objetificação. Pode-se mesmo falar que mulheres escolhem passar por procedimentos estéticos dolorosos e perigosos à saúde quando vivemos sob a pressão de um padrão estético inalcançável e somos humilhadas quando nos apresentamos fora deste padrão? 

Pode-se mesmo dizer que mulheres escolhem usar roupas provocantes, quando desde a infância somos bombardeadas com imagens de hipersexualização enquanto sinônimo de sucesso para a conquista do olhar masculino, sob o qual aprendemos a medir nosso valor? Pode-se mesmo falar que mulheres escolhem gastar rios de dinheiro com maquiagem, cabelo, roupas e acessórios “da moda” se perdemos oportunidades de emprego quando não nos “arrumamos”? 

As consequências de seguir o bordão “meu corpo, minhas regras” também não são levantadas dentro do movimento – claro que enquanto indivíduos, nós até podemos fazer escolhas que saem dos padrões – mas o que acontece quando, de fato, fazemos isso? 

Somos humilhadas socialmente, afastadas dos espaços e perdemos oportunidades. 

O sucesso do “meu corpo, minhas regras” só se aplica a quem faz as escolhas “certas” e segue as regras já em vigor. As regras nunca foram nossas – estas sempre foram as regras ditadas pelo patriarcado. Ao dar às mulheres a falsa sensação de que seguir tais regras é uma escolha ao invés de uma imposição, a estrutura opressiva se mantém inabalada e sem resistência. 

  1. “Empoderamento”

O feminismo liberal se promove em cima da ideia de que o feminismo traz “empoderamento” às mulheres – poder de escolha, poder de tomada de decisões. Empoderamento pode ser definido como “ação de se tornar poderoso, de passar a possuir poder, autoridade, domínio sobre”. 

Primeiramente, para falarmos de poder, precisamos analisar o que significa, de fato, ter poder:

Em seu artigo “Um Conceito de Poder”, Barbosa disseca este conceito, começando por sua origem no termo indo-europeu poti: “que designava o chefe de um grupo social ou familiar, de um clã, de uma tribo e tinha uma concepção política de autoridade do chefe” (Schaal, 1994, p. 8), até sua conotação política, oriunda da Grécia antiga, onde a filosofia discute o poder como instituição. Podemos perceber, a partir de análise histórica, que poder de facto não se resume ao poder do indivíduo sobre si, mas engloba o poder político de ditar as regras que um determinado grupo/sociedade deve seguir.

Ao analisarmos mulheres enquanto classe política, percebemos que não há poder – nós não ditamos regra nenhuma. Somos minoria política nos Poderes Executivo, Legislativo e  Judiciário, o que resulta em uma má representação dos interesses da classe política feminina e nos deixa à mercê de quem realmente possui este poder político: os homens. 

Ou seja, o nosso “poder individual” está restrito aos acessos concedidos pelos detentores do poder real; o nosso “poder de escolha” está condicionado ao que foi estabelecido, pelos homens, como “aceitável” e “correto”. Tente buscar formas legais de realizar um aborto, por exemplo, e verá: não, mulheres não são “empoderadas”. “Poder” não é ter a “liberdade” de escolher usar saia ou calça – e como já discutido no tópico acima, podemos muito bem colocar a palavra “escolha” entre aspas também.

O verdadeiro poder existe sobre a possibilidade de ter autonomia acerca de tomadas de decisões no âmbito político que afetam as nossas vidas enquanto classe. O “empoderamento” vendido na óptica liberal dá às mulheres a falsa sensação de “donas de si”, mas em sua aplicação prática, serve apenas a um pequeno grupo delas, que usufrui de capital suficiente a lhes permitir passar por cima do sistema vigente, e ainda assim, com  restrições das consequências sociais de isolamento e represália. 

  1. “A prostituição é um trabalho como qualquer outro”

O que significa “trabalho”? 

Olhemos pelo ângulo relevante para a discussão; o conceito de trabalho dentro do sistema capitalista pode ser descrito como:

“qualquer atividade física ou intelectual, realizada pelo ser humano, cujo objetivo é fazer, transformar ou obter algo para realização pessoal e desenvolvimento econômico; Trabalhador, também chamado de operário e proletário, é um termo amplo que inclui todo aquele que vive do seu trabalho, ou seja, o indivíduo que emprega sua força de trabalho para a transformação material ou imaterial, em funções geralmente subordinadas.”

Assim, conclui-se que:

Trabalhador + mão de obra = trabalho;

Trabalho = produção e comercialização de um determinado produto;

Comercialização de um produto = dinheiro. 

Em qualquer profissão, temos um produto que é gerado e comercializado a partir dos esforços do trabalhador; um professor tem como produto de seu trabalho suas aulas. O artista produz quadros, música, desenhos, tatuagens, livros; farmacêutico, medicamentos; o designer produz roupas; os faxineiros tem como produto a limpeza; o advogado tem como produto a defesa dos interesses de seus clientes. 

Sejam esses produtos palpáveis como medicamentos, ou sejam esses produtos conceitos mais subjetivos como prestação de serviços, em nenhum desses trabalhos o produto de comercialização é o corpo do trabalhador – o corpo é um instrumento de trabalho para a produção do objeto final, ou seja, o que se vende é a força de trabalho e aquilo que ela realiza – a limpeza, a música, o livro, a defesa. Em nenhum outro emprego o trabalhador em si é colocado enquanto o produto final, um objeto para comercialização. 

Na prostituição, “trabalhador” e “produto” se resumem à mesma coisa: a mulher prostuída. O produto comercializado na prostituição é o corpo da mulher. Ou seja: o corpo, em si, é vendido; o que está em exposição como produto é o ser humano. 

Lógica semelhante poderia ver-se na servidão medieval: o vassalo era propriedade de seu senhor, ainda que desse parte de sua produção, aquele poderia dispor de seu bem-estar, de seus bens, sua família e sua saúde a seu bel prazer. Poderia inclusive comercializá-lo como escravo, se assim desejasse.

O vassalo, entretanto, não escolhia nascer nesta condição social, ao contrário era-lhe imposta por sua marginalização. Ele não tinha bens, nome, nada que lhe desse o necessário para ter para si o poder de escolha sobre sua própria existência.

A prostituição pode ser enxergada com o mesmo viés da vassalagem: faz parte da história das mulheres, socialmente marginalizadas por um sistema do qual não tem qualquer controle, sem oportunidades de exercerem outro tipo de labor, que recorreram à venda de seus corpos àqueles que detém de fato o poder politico (homens) como forma de sobrevivência. 

A prostituição não “empodera” mulheres que escolhem “cobrar pelo que já fazem de graça”, e sim coloca mulheres na posição de objetos de consumo de “seus senhores”; à venda. E, enquanto produtos, estão sujeitas às mesmas condições e tratamentos que qualquer objeto inanimado, sendo completamente destituídas de sua humanidade. 

A revolução francesa já enxergava esse viés de controle social, o que levou homens a revolta contra seus senhores, posto que não mais gostariam de ser tratados como ferramentas de trabalho à disposição da nobreza. 

Gerda Lerner aborda em seu livro “A Criação do Patriarcado” a ideia de que a dominação das mulheres por parte dos homens foi a primeira forma de subjugação de um grupo de seres humanos por outro, de forma que a partir da construção da hierarquia patriarcal é que se desenvolveu a escravização de estrangeiros e outras formas de dominação. 

Sendo assim, na história das revoluções ao redor do mundo, o papel das mulheres é apagado. Enquanto homens são condecorados por seus bravos feitos que levaram à libertação, esquece-se que para que esses homens tivessem a oportunidade de lutar, eram as mulheres que administravam o lar e cuidavam dos filhos, exercendo todo o trabalho de base e suporte para que os homens alcançassem suas conquistas políticas. Com uma estrutura hierárquica já muito bem estabelecidas onde a mulher é colocada como a serva até do próprio vassalo, uma vez que o homem comum passou a exercer poderio político, mulheres seguiram sendo esquecidas.

Como provocação, deixa-se o questinamento: se a prostituição é realmente um trabalho como qualquer outro, por que não vemos homens se vendendo nas esquinas com a mesma frequência que vemos mulheres? Por que são majoritariamente mulheres em situação de miséria que recorrem a este “trabalho”? Tal ideia corrobora-se com o fato de que mulheres que não detém qualquer poderio econômico constituem a maioria das pessoas prostituídas.

A resposta é simples – homens tomaram para si a posição de poderio político naquela revolução anteriormente apresentada, quando se fala da história ocidental, já exercendo a dominação sobre suas mulheres para que tivessem ao seu dispôr servas fazendo o trabalho de suporte para que eles chegassem ao poder. Não vão retornar a posição de objetificação e não vão arriscar perder o instrumento que os permitiram tal feito. 

Ademais, se a prostitução é realmente um trabalho como qualquer outro, por que existe um mercado tão amplo de tráfico sexual que move milhões? Por que é necessário atrair mulheres de países subdesenvolvidos com a falsa promessa de uma vida melhor em países “de primeiro mundo” para traficá-las e vendê-las enquanto servas sexuais, ou forçá-las a trabalhar em bordéis para quitar dívidas intermináveis com coiotes, sob ameaça e coerção?

O argumento de que regulamentar a prostituição para que mulheres prostituídas estejam sob a mesma proteção das leis trabalhistas que qualquer outro trabalhador é falacioso. Não há como regulamentar a comercialização de seres humanos. 

Ao vender a ideia de que prostituição é apenas mais um trabalho qualquer,o feminismo liberal negligencia a profundidade dos problemas que cercam mulheres prostituídas e cria uma “cortina de fumaça” ao redor deles, fazendo com que a sociedade acredite que a prostituição é uma escolha consciente, mantendo mulheres em situação de vulnerabilidade extrema e de servidão aos interesses masculinos. 

  1. Barriga de Aluguel

A mesma lógica da prostituição pode ser aplicada ao falarmos sobre “barriga de aluguel”. Primeiramente, estamos mais uma vez falando sobre a comercialização dos corpos das mulheres; o útero é visto como algo que se assemelha a qualquer produto que possamos alugar e que estará à nossa disposição por determinado período de tempo. A mulher segue em uma posição de objeto à disposição de um mercado. 

É curioso pensar que a comercialização de órgãos não é apenas tida enquanto ilícita, mas também socialmente lida enquanto antiética. No entanto, parece que o útero não goza dessas mesmas proteções. 

Novamente, olhamos para as estatísticas: a Ucrânia se tornou referência mundial no mercado de barriga de aluguel, e o que vemos não são mulheres com poder aquisitivo alugando seus úteros – são as mulheres mais pobres e marginalizadas que encontramos prestando tal “serviço”. 

Em segundo lugar, há outra problemática a se considerar; aqui, além de estarmos tratando da comercialização de mulheres, também há a comercialização de crianças sob demanda. 

Movimentos “progressistas” alegam este ser o caminho para que casais inférteis e casais de homens homossexuais realizem o sonho de ter a própria família, e tal prática é colocada enquanto um ato de puro altruísmo. No entanto, a profundidade que cerca o debate da barriga de aluguel abre discussões sobre as implicações psicológicas para as mulheres que alugam seus úteros, as questões de saúde de bebês que não serão amamentados, questões acerca do abandono de crianças para adoção e até mesmo eugenia e pedofilia – podereíamos estar falando sobre uma prática que eventualmente permitirá que pedófilos tenham espaço para encomendar suas vítimas?

Podemos ainda aprofundar o debate e questionar o que é considerado uma “família de verdade”, por que esses casais anseiam tanto por uma, de onde vem essa estrutura e a que fim ela serve – considerando que o modelo de família que temos hoje também é um dos pilares que sustenta o capitalismo. Podemos, também, questionar a necessidade de um filho biológico. Há muito o que expandir.

Mas não vemos essas discussões nos círculos liberais. Fala-se apenas sobre como é lindo uma mulher abdicar de si mesma e colocar seu corpo à disposição dos desejos de terceiros.

Ainda que no Brasil a prática de cobrar pelo aluguel de um útero seja ilegal, restando como opção a “barriga solidária”, a diferença é apenas uma: o objeto – o útero – não é alugado, é emprestado. Mas segue na posição de objeto.

  1. “Pornografia feminista”

Tudo o que foi falado sobre prostituição também se aplica à pornografia. Além de todas as questões envolvendo o corpo da mulher enquanto objeto para ser comercializado e consumido, aqui é interessante também abordar como o mercado da prostituição e pornografia alimenta o tráfico sexual e contribui com o crescimento de uma cultura cada vez mais pornificada onde o estupro, ao passo que se torna um conceito cada vez mais subjetivo, se torna uma prática cada vez mais corriqueira. 

Fala-se sobre a exploração de desejos e fetiches através da pornografia, tendo ela como um catalisador saudável, mas ignora-se que do outro lado da tela há uma mulher sendo explorada sexualmente e, muito possivelmente, estuprada, para fins de entretenimento de, majoritariamente, homens – o público ao qual a produção de pornografia é destinada. 

Não apenas a ideia da pornografia enquanto inofensiva é uma falácia porque para sua existência a exploração de mulheres é necessária, mas também porque não há nenhum dado comprovando que pedófilos, estupradores e homens violentos se contenham apenas com o que assistem – pelo contrário, o estímulo da pornografia parece ter o efeito oposto, instigando seus consumidores a praticarem os atos que veem. 

Estudos mostram que os efeitos da pornografia no cérebro pode ser comparado ao efeito de drogas – quanto mais se usa, mais precisa. Estatísticas retiradas dos sites de pornografia mostram que, entre os conteúdos mais procurados, estão conteúdos envolvendo menores de idade em situações de violência – e que o interesse é por cada vez mais violência. 

O mercado cresce ao ponto de empresas que produzem brinquedos eróticos investirem na produção de bonecas hiper realistas que se assemelham a crianças de idades tão novas quanto dois anos.

Criou-se esse conceito de “pornografia feminista”, que coloca mulheres na posição de um suposto controle – mulheres assumem os cargos de direção, roteiro e produção dos filmes – sob a justificativa de que esta é uma forma segura para que mulheres possam fazer pornografia. Acontece que as mulheres seguem sendo os produtos vendidos com a finalidade de servir sexualmente aos homens (nós sabemos muito bem que pornografia lésbica é feita para satisfazer fetiche masculino), ou seja, seguem sendo comercizliadas. Ademais, os mesmos fetiches de violência, estupro e pedofilia seguem sendo produzidos nesse nicho para atender a demanda do mercado. 

Mais uma vez, os acessos concedidos às mulheres estão sujeitos ao controle masculino. Mulheres podem ter conseguido assumir cargos altos dentro do mercado da pornografia, mas seguem produzindo conteúdo direcionado a homens a partir da venda e expliração de outras mulheres. 

O padrão que podemos observar seguindo a aceitação cada vez mais ampla da pornografia enquanto algo saudável e, agora “feminista”, é a naturalização de práticas violentas e dessensibilização à essa violência, dando aos homens mais espaço para abusarem e estuprarem enquanto faz com que mulheres acreditem nisso enquanto algo perfeitamente normal.

Nas palavras de Andrea Dworkin:

“O fato é que estupro e prostituição originaram e continuam a originar a pornografia. Politicamente, culturalmente, socialmente, sexualmente, e economicamente, estupro e prostituição geram pornografia; e a pornografia depende do estupro e da prostituição de mulheres para sua existência contínua.” —  Andrea Dworkin

  1. “A maternidade é uma escolha”

A maternidade enquanto uma escolha que pode ser rejeitada também é muito vendida pelo movimento liberal – principalmente com a chegada do movimento childfree, que além de igualmente superficial, dissemina ódio contra mães e crianças, garantindo o isolamento desses grupos. Esta é uma ideia que engloba o que já foi discutido anteriormente sobre poder de escolha. No entanto, falemos de forma mais detalhada sobre este tópico em específico. 

Para entendermos que a maternidade não pode ser uma escolha consciente das mulheres, precisamos explorar o conceito de maternidade compulsória. 

Compulsório é um adjetivo com origem no Latim compellere, que significa “levar a um lugar, levar à força” – palavra formada por com-, que quer dizer “junto” e pellere, que quer dizer “guiar, levar”.

O significado de “compulsório” é entendido como algo que obriga ou compele a fazer alguma coisa. Assim, compulsório é toda força interna ou externa a uma pessoa que impele a realização de alguma coisa.

“Quando usamos o termo “maternidade compulsória” para definir como a maternidade se apresenta para as mulheres, estamos literalmente falando de “maternidade obrigatória”. Estamos dizendo que, de maneira subjetiva e bem objetiva, toda mulher é “obrigada” a ter filhos. E isso acontece de maneira subjetiva, através da nossa socialização e de maneira bem objetiva, pela impossibilidade de mecanismos que eficazmente impeçam mulheres de engravidar.” – Cila Santos, QG Feminista.

Neste texto, escrito por Cila Santos para a QG Feminista, o conceito de maternidade compulsória é explorado de forma detalhada. Recomenda-se muito a leitura. Ao entendermos como a maternidade compulsória funciona, entendemos que ser mãe não é uma escolha consciente. 

Além de todas as questões abordadas por Cila em seu brilhante texto, precisamos também considerar as violências direcionadas às mães e suas crianças: 

Da violência obstétrica até a Lei da Alienação Parental, a maternidade segue sendo uma arma usada pelo patriarcado para manter mulheres em posição de subserviência através de intimidação, coerção e medo, nos sobrecarregando com o trabalho de maternagem a fim de nos manter presas na esfera doméstica enquanto violentam a nós e nossos filhos. Nada disso é exposto nos comerciais de margarina onde mães aparecem realizadas e felizes com o trabalho de cuidados. 

Além de sermos socializadas a vida inteira para a maternidade com bonecas, tarefas domésticas e de cuidado para com outros familiares, a realidade sobre ser mãe é escondida de nós. Muito pouco se fala sobre essas violências, e o silenciamento das mães é garantido – exatamente – porque mulheres não tem poder para falarem na esfera pública sobre as questões que nos cercam.

Mas a grande questão é: por que? E a resposta é mais simples do que parece – manutenção de mão de obra.

Para sustentar o capitalismo, é necessário explorar a capacidade reprodutiva de mulheres, para que nós continuemos a parir a mão de obra que irá produzir para o sistema. Quanto mais vulneráveis e pobres forem as mulheres, mais vulneráveis e pobres será a prole e, por consequência, mais barata é essa mão de obra. 

Novamente vê-se a lógica paralela à vassalagem.

Sendo assim, a maternidade é mais uma entre todas essas “escolhas” que nos são impostas. Dizer às mulheres que nós temos essa escolha sem se preocupar em derrubar a estrutura da maternidade compulsória e exploração da capacidade reprodutiva é apenas nos manter sob mais uma ilusão para seguir alimentando o mesmo sistema que nos massacra.  

  1. “Childfree”

O movimento childfree surge enquanto uma resistência à maternidade compulsória, o que é válido – mulheres que se recusam a ter filhos. No entanto, com a tomada do liberalismo e movimentos pós-modernos, discursos feitos pelas que conseguem escapar da imposição da maternidade fugiram da direção da conscientização da maternidade compulsória (porque, afinal, a conscientização de mulheres não é nem um pouco interessante), e caminham para a desumanização de crianças, colocando-as como seres que não merecem dignidade e que precisam ser excluídas da sociedade. A ideia disseminada pelo movimento childfree hoje não é a de que mulheres deveriam poder escolher a maternidade conscientemente, e sim a de que as pessoas têm o direito de conviver em espaços livres de crianças. Ademais, mães são humilhadas e lidas enquanto fracas por terem se submetido ao trabalho de cuidado, indignas de participar da vida pública e não merecedoras de assistência para exercer tal trabalho   – “quem pariu Mateus, que o balance”. 

É interessante reparar que, ao trocarmos a palavra “criança” por qualquer outro grupo social composto por minorias em falas direcionadas às crianças, percebemos como essa violência é naturalizada. Imagine entrar em um restaurante e ler uma placa dizendo que “não é permitida a entrada de homossexuais”, ou ouvir alguém dizer com toda a naturalidade que “não gosta de pessoas pretas”, que “não tem paciência com idosos e prefere ficar longe”, que “acomodações para pessoas PCD são desnecessárias” ou que “se você não sabe controlar a sua mulher, deixa ela em casa”.

O movimento childfree hoje instiga o isolamento de mães e crianças, contribuindo com a perpetuação de ciclos de violência contra crianças e garantindo o silenciamento de mães, reforçando o que foi abordado no tópico anterior. Sob o manto da ilusão da “escolha” sem o aprofundamento no debate do que levam a essas “escolhas”, mulheres mães são punidas por “escolherem” ter filhos. Na prática, todo movimento encabeçado por ideias liberais, o qual a  propaganda é “inclusão e liberdade”, não passa de uma hipocrisia camuflada que ostraciza mulheres.

  1. “Liberdade sexual”

Ainda ampliando a discussão acerca de “escolhas”, o feminismo liberal também irá tratar sobre a liberdade sexual enquanto a liberdade de escolher engajar em relações sexuais com quem e com quantas pessoas a mulher desejar. 

Novamente, o debate se mantém raso, uma vez que, ao mesmo tempo que incentiva mulheres a se hipersexualizarem, ignora as consequências que mulheres reais encaram dentro da estrutura misógina que ao mesmo tempo em que explora nossos corpos, não nos perdoa por “permitir” que eles sejam explorados. 

Basta lembrar-se de falas comuns direcionadas às mulheres como “você usou essa roupa porque quis, o que você esperava que fosse acontecer?”, “ninguém mandou beber tanto”, “você estava rebolando que nem uma vagabunda, óbvio que ele achou que você queria”, “você aceitou ir na casa dele, o que você esperava?”

Nenhum desses ditos é, entretanto, direcionado a podar a liberdade sexual do homem.

Vemos artistas famosas usando seus corpos como forma de autopromoção dentro da cultura pop, vendendo a auto objetificação enquanto forma de empoderamento – mas jamais nos esqueçamos que as meninas que as aplaudem e imitam seus comportamentos hipersexualizados não usufruem da mesma proteção e ficam cada vez mais vulneráveis a abusos. Afinal, não adianta ter o “poder” de usar uma saia curta na rua se a mesma saia curta que nos dá “empoderamento” é usada como justificativa pelos homens para que eles abusem e estuprem – “ela estava pedindo, olha a roupa que ela estava usando.”

Enquanto a ideia de liberdade sexual é cravada em nossas mentes enquanto a “liberdade” de nos hipersexualizarmos, estamos apenas facilitando o acesso aos nossos corpos para o entretenimento dos homens. Não temos, ainda, a liberdade real de dizer “não” dentro da cultura do estupro. O que de fato acontece é que somos conduzidas a fazer exatamente o que o patriarcado quer que façamos – nos colocar em posição de objeto sexual para que homens possam usufruir.

  1. “Busca por igualdade de gênero”

Para entender por que igualdade de gênero não existe e nem nunca existirá, é preciso entender o gênero enquanto um sistema – e não algo inato ou algo com o qual nos identificamos.

“Menina veste rosa, menino veste azul”, uma frase que ficou famosa e que é o perfeito exemplo do que é gênero – uma estrutura imposta a nós. 

Dentro desta estrutura, tudo que remete ao femino é colocado enquanto inferior. Culturalmente, tudo que está relacionado ao gênero feminino remete à submissão, subserviência, inferioridade e fraqueza, ao passo que tudo que está relacionado ao gênero masculino remete à liderança, poder, superioridade e força. “Feminilidade” e “masculinidade” jamais poderão alcançar um patamar de igualdade porque, em sua essência, um é inferior ao outro. 

Pense no sistema de gênero da mesma forma que o capitalismo: o capitalismo é um sistema que, para existir, depende da exploração da pobreza; para se manter, o capitalismo precisa de operários pobres vendendo mão de obra barata. Não é possível existir igualdade de classe dentro do capitalismo porque, em sua essência, isso não é possível. No capitalismo, vemos uma clara hierarquia de classes, extremamente necessária para manter a centralização de poder nas mãos de alguns poucos, que controlam a maioria menos favorecida – um sistema no qual pessoas usufruem das mesmas oportunidades e privilégios, estão sujeitas às mesmas condições de vida, com distribuição justa de renda e acesso igualitário à saúde, educação e lazer definitivamente não pode ser definido como capitalista. Portanto, é impossível falar sobre igualdade de classes dentro do capitalismo – a exploração o sustenta e o define. 

A mesma coisa acontece quando falamos sobre o sistema de gênero; em seu cerne, a feminilidade é colocada enquanto inferior à masculinidade. Portanto, falar sobre igualdade de gênero é impossível – a masculinidade se sustenta em cima da opressão da feminilidade. Ou seja, é um sistema construído na base de uma hierarquia

Enquanto mulheres são socializadas dentro da feminilidade – gastando seu tempo e dinheiro com beleza, dedicando-se aos cuidados, sendo ensinadas a serem delicadas e passivas – homens são socializados dentro da masculinidade – sendo ensinados a prover e serem chefes em suas famílias, sendo incentivados a estudarem e crescerem profissionalmente, aprendendo a tomar controle e reivindicar poder através da violência – isso é gênero.

Com conceitos que são primordialmente desiguais, simplesmente não há como falar sobre igualdade. É como colocar um peixe e um leão competindo numa pista de Fórmula 1 e esperar que ambos consigam o mesmo resultado só porque os carros são exatamente da mesma marca, modelo, ano e cor – nenhum dos dois vai saber dirigir, mas o leão consegue correr enquanto o peixe morre asfixiado.

Mulheres não escolhem e não se identificam com a feminilidade; ela não se resume a estereótipos estéticos, essa é só a ponta do iceberg. A socialização dentro da feminilidade é sobre ensinar meninas a serem passivas e aceitarem violências, a servirem e a viverem em prol de cuidar dos homens e parir operários e herdeiros. A feminilidade é uma ferramenta de opressão e a masculinidade é a arma apontada na nossa cabeça, pronta para atirar no momento em que pisarmos fora da linha. 

Ao dizer que mulheres se identificam com o gênero feminino e que por isso são “cis”, o que se está dizendo é que mulheres se identificam com a sua opressão – com a estrutura que as adestrou para serem servas, porque isso é gênero dentro da teoria feminista: não é sobre como nos apresentamos ao mundo, é sobre a forma como o mundo nos trata.

Em resumo: não é possível existir igualdade dentro de uma hierarquia, pois o próprio conceito de hierarquia é a desigualdade. Ao nos dizer que é possível alcançar igualdade de gênero, cria-se mais uma ilusão que apenas mantém as estruturas de opressão. 

  1. “Feminismo radical é transfóbico”

Talvez a única coisa que seja falada sobre o feminismo de raiz é exatamente isso: feministas radicais são transfóbicas. Essa discussão ganhou muita notoriedade na mídia e nas redes sociais, principalmente após os acontecimentos envolvendo a autora de Harry Potter, J. K. Rowling. Mas a questão é que nunca houve um interesse da vertente liberal em conhecer a teoria radical, e os envolvidos na difamação de Joanne sequer leram o que ela de fato escreveu – mas os detalhes desta questão vão ter que ficar para outro texto. 

O feminismo radical se coloca enquanto uma grande ameaça ao status quo justamente porque aprofunda os debates que a vertente liberal tão solenemente opta por ignorar, e olha para mulheres enquanto classe política que necessita de emancipação, colocando real poder nas nossas mãos para abolir a estrutura construída em cima de pilares misóginos – ao passo que liberais acreditam que a reforma de direitos individuais através do sistema jurídico vigente é suficiente, sem olhar para o cerne da opressão feminina e, assim, mantendo tais pilares. 

Feministas radicais se preocupam em fazer uma análise histórica, buscando a raiz da opressão feminina a fim de, literalmente, “cortar o mal pela raiz” e buscar mudanças no âmago social, destruindo os pilares do patriarcado. Em contrapartida, o feminismo liberal carece de qualquer análise histórica que explique as origens da desigualdade dos sexos ou de uma análise sociológica que a relacione com o contexto institucional mais amplo. Em vez disso, o enfoque liberal aceita os aspectos da sociedade: o capitalismo, o militarismo, os sistemas jurídicos, a competição e a hierarquia. Paralelamente, as teorias liberais e pós-modernas acerca do que é gênero divergem do que se fala na teoria feminista de raiz, retirando todo o peso histórico e social e olhando apenas para uma performance individual. 

Em resumo: o feminismo liberal é amplamente aceito porque não ameaça as reais estruturas de poder, ao passo que isso é exatamente o que o feminismo de raiz faz. 

Feministas de raiz teorizam sobre a origem da opressão feminina estar atrelada à exploração de nossa capacidade reprodutiva presumida, o que faz com que o sexo biológico seja determinante na escolha da forma em que homens e mulheres serão socializados. O papel do gênero, dentro desta perspectiva, é justamente impor a hierarquia e garantir a submissão das mulheres e o poder dos homens. 

Pautas abordadas pelo movimento radical englobam questões relacionadas ao sexo e entendem o gênero enquanto essa estrutura hierárquica, que precisa ser abolida, ao invés de um sentimento individual que precisa de reafirmação através de estética. O que feministas radicais dizem é que o gênero é uma das muitas formas de opressão, e que a busca por uma reafirmação dentro de um gênero apenas fortifica essa hierarquia. O feminismo radical busca a abolição do sistema de gênero para que, independente do sexo biológico, pessoas possam se expressar individualmente da forma que quiserem, sem imposições do que é “ser mulher” ou “ser homem” socialmente – o “ser homem” e “ser mulher”, num sistema sem hierarquia de gênero, seria relevante apenas dentro do escopo biológico e questões de saúde nas quais essa diferença é de fato relevante. 

Feministas radicais irão falar sobre maternidade compulsória, pobreza menstrual, violência obstétrica, exploração sexual, prostituição, pornografia, alienação parental – opressões direcionadas a mulheres única e exclusivamente pelo fato de terem nascido no sexo feminino para que o controle dos nossos direitos reprodutivos esteja fora das nossas mãos, permitindo assim a exploração dos nossos corpos e nossa capacidade reprodutiva presumida; opressões que pessoas do sexo masculino não experienciam. 

Num paralelo, o feminismo radical pode ser comparado à vassalagem às vésperas da revolução francesa: identifica-se no campo político como uma classe unida a partir de uma opressão em comum e deseja a quebra do sistema que a oprime. No caso das mulheres, viemos de culturas diferentes, classes sociais diferentes, raças diferentes; cada uma de nós carrega uma história, mas a nossa opressão segue um padrão semelhante independente da nossa origem. Portanto, a única característica que nos une enquanto classe política, é o nosso sexo – e o motivo por trás da opressão de mulheres ao redor do mundo. Não somos oprimidas porque nos identificamos com o gênero feminino, e sim porque o gênero feminino foi imposto a nós por sermos mulheres. 

Longe de tentar destituir a luta trans, mas equiapará-la à feminista é o mesmo que dizer que os nobres do palácio de Versailles estavam junto ao povo – eles usufruiam dos privilégios dos impostos, nada poderiam entender sobre a servidão e o sofrimento daqueles que gritavam por pão atrás dos portões. Da mesma forma, pessoas socializadas sob a imposição da masculinidade que usufruíram dos privilégios concedidos a homens, ainda que sujeitos a outras formas de opressão, jamais poderão compreender as opressões direcionadas ao sexo feminino. Isso não significa, de forma alguma, que feministas radicais são contra o movimento transativista ou que negam a necessidade de que tal movimento exista para militar em favor de pessoas trans. Significa que, enquanto grupos com demandas diferentes – por estarem unidos por opressões diferentes – , um não cabe dentro do outro, da mesma forma que um não deve se sobrepor ao outro. A conquista de direitos de uma classe não deve vir às custas da perda de direitos de outra.

Enquanto um movimento que prioriza mulheres e se recusa a permitir que as lutas de outras minorias se sobreponham às nossas dentro do nosso próprio movimento – afinal, esta cobrança não recai sobre nenhum outro movimento social -, o feminismo radical é lido como “fóbico”. 

Vale a comparação com outros movimentos para ilustrar: meninas e mulheres brancas, ainda que usufruam do privilégio social de raça, encontram-se vulneráveis a pedofilia, estupro marital, violência obstétrica, pobreza menstrual, etc – ou seja, todas as violências já anteriormente citadas. No entanto, essas são pautas que não cabem dentro do movimento negro, por exemplo; afinal, a prioridade e o foco do movimento negro é abordar questões raciais. Mulheres que não possuem deficiência também não terão essas pautas abordadas dentro da militância PCD – pois o foco do movimento são questões relacionadas à acessibilidade para pessoas com deficiência. 

Não existe a cobrança para que outros movimentos abracem causas que divergem de seu foco; não é cobrado de homens gays que eles abracem as dores de mulheres hétero em casamentos abusivos e transformem isso em uma pauta dentro de sua militância. No entanto, esta é a exigência feita ao feminismo – precisamos abraçar todas as causas e incluir todos os grupos. 

O feminismo não surgiu enquanto um movimento “para todes”, e nem deve ser. O feminismo nunca buscou “igualdade entre os gêneros” – o feminismo sempre foi um movimento de luta pela emancipação de mulheres do sistema patriarcal. 

Isso também não é dizer que movimentos sociais não devem apoiar uns aos outros e funcionar de forma cooperativa, pelo contrário – é assim que deve ser. O que não dá é pedir que nos esqueçamos de nós mesmas para direcionarmos nossos esforços a pautas que não nos contemplam.

Com os movimentos pós modernos, que relativizam as violências e opressões direcionadas a pessoas do sexo feminino, surge então o questionamento: o que é mulher? Quem é mulher? Quem pode ser mulher? Afinal, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, disse Simone de Beauvoir. Com a apropriação desta única frase, retirada de seu contexto original, movimentos liberais vem buscando o desmonte dos direitos femininos, concedendo a homens acesso a espaços antes separados por sexo a partir de políticas de auto identificação, além de instigar mulheres a atuarem em prol da própria opressão com a ilusão de escolha e empoderamento.

Como se não bastasse o apagamento das mulheres através de violências sistemáticas, a estratégia de opressão do patriarcado busca atuar dentro de nosso próprio movimento para que sejamos apagadas enquanto classe – e conseguem, afinal, nós mesmas, por conta da nossa socialização, cedemos aos desejos e à pressão, priorizando o bem estar de todos acima do nosso próprio.

Às mulheres não é permitido, sequer, a apropriação de uma palavra própria para nos definir enquanto classe política – coisa que não acontece com nenhuma outra classe.

Estabelecida como uma ameaça para o status quo, não é difícil entender o porquê da teoria que cerca o feminismo radical ser apresentada ao público progressista enquanto algo equiparável a crenças fundamentalistas; pintar o retrato do feminismo radical enquanto algo ruim, excludente e preconceituoso evita que mulheres se organizem politicamente enquanto classe unida, dentro de um movimento que busca poder real para que mulheres derrubem as estruturas patriarcais. 

O que se usa são as nossas dores e vulnerabilidades somadas à nossa socialização, para que: 

1) não olhemos para as nossas necessidades, priorizando todos acima de nós, o que faz com que deixemos de lado as nossas próprias lutas, e;

2) não consigamos olhar para as feridas que a cultura patriarcal nos causou, impedindo que nos tornemos conscientes da nossa opressão. 

Ninguém gosta de se sentir enganado. Dói muito parar e pensar que talvez, você não tenha tido tanto controle sobre suas escolhas quanto você pensa. Dói olhar para o fato de que, talvez, você não queria realmente ser mãe, ou de que não gosta tanto assim do seu marido/namorado. Dói olhar para o fato de que, talvez, você nem goste de homens – mas se relacionou com eles a vida toda porque foi ensinada que este é o certo a se fazer – e perceber que perdeu boa parte da sua vida se forçando a fazer algo que te trouxe uma sensação que você não sabe exatamente o que é, mas sabe que incomoda.

Talvez aquela sensação de vergonha que bate de leve todas as vezes em que transa com alguém que não está tão afim, todas as vezes que você se hipersexualiza e se auto objetifica porque te disseram que isso faz de você empoderada e em controle da própria sexualidade, e que te dizem que é só “resquício de quando te ordenaram ser recatada”, não seja exatamente vergonha de si mesma – talvez seja algo te dizendo que isso não é tão confortável para você, porque você, no fundo, sabe o preço que paga por “assumir ser uma vagabunda”. Talvez, “assumir ser uma vagabunda” tenha mais relação com o fato de que te ensinaram a vida toda a não ter auto estima e que se submeter aos desejos alheios traz a você algum valor na sociedade. 

Aquele incômodo quase invisível, mas que está ali, que você sente toda vez que seu parceiro quer bater, asfixiar, amarrar, humilhar, prender ou viver fantasias de estupro na cama – mas você ignora dizendo a si mesma que aquilo também te dá prazer, porque dói demais olhar para o fato de que você, desde que nasceu, aprendeu a relacionar violência com amor e hoje tem dificuldade de discernir uma coisa da outra; aquele incômodo, talvez, esteja tentando te dizer que isso não é normal ou saudável. 

Talvez a culpa que você sente quando bate no seu filho esteja ali por um motivo.

Talvez, só talvez, os nossos instintos mais básicos de sobrevivência estão ali no fundo da nossa cabeça tentando nos dizer que, do jeito que está, não está bom; mas é a voz mais abafada, silenciada por uma cultura inteira, tão gigante e tão bem estabelecida, que faz com que nós desacreditemos de nossas próprias dúvidas e sentimentos em detrimento do que fomos socializadas a acreditar.

E dói olhar para o fundo de tudo isso. Dói olhar para a raiz – e por isso é fácil acreditar que o feminismo radical é malvado. Porque ele, de fato, machuca. Ele faz você olhar para tudo aquilo que te oprime e encarar e questionar absolutamente tudo à sua volta. Não é uma posição confortável. É óbvio que é muito mais gostoso ouvir algo que valida nossas supostas escolhas e não nos faz olhar para essas dores.

Pense, então, no patriarcado como um grande tabuleiro de xadrez, onde os homens são representados pelo Rei: apesar de ser uma peça que quase não se movimenta, é a mais importante do jogo e todas as outras peças se movimentam em prol de sua proteção; Pense no Capitalismo, Estado e Igreja enquanto Rainha, Bispos, Torres e Cavalos – estruturas posicionadas de formas estratégicas para garantir a maior proteção possível ao Rei. Às mulheres, sobram-nos as posições de peões – manipuláveis, relativamente descartáveis e sem valor quando comparadas às outras peças. Com muito esforço e estratégia, até é possível que peões sejam promovidos a peças com pontos de maior valor – mas nunca a um Rei. 

Sob este manto ilusório de liberdade, inclusão e aceitação do liberalismo, é possível mudar algumas peças de lugar no tabuleiro e é possível promover peões; mas o jogo, assim como suas regras, permanecem os mesmos – todos em função do Rei, posição que peões jamais irão atingir. 

Para as feministas radicais, isso nunca será o suficiente. Para acabar com o jogo, de vez, é preciso dar o xeque-mate e quebrar não apenas o tabu – mas o tabuleiro inteiro.

“Eu não terei a minha vida reduzida. Eu não vou me curvar ao capricho ou à ignorância de outra pessoa.” – Bell Hooks

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