Juntamente com a questão da reverência ritualística, a prece também tem sido foco de discussões no meio heathen. Normalmente associada às práticas monoteístas, o ato de se fazer preces é recebido com certa animosidade; no entanto, tal resposta, assim como a prática de genuflexão, parece ser fruto de uma reação adversa à cultura comum.
Como observamos anteriormente, existem evidências históricas em sagas, relatos e objetos arqueológicos que refutam a ideia que heathens modernos normalmente concebem de que não se abaixava diante dos deuses.
Dentro da abordagem reconstrucionista, buscamos nos pautar em evidências que podem ser ratificadas dentro de fontes históricas em detrimento de gnose pessoal induzida por possível aversão às religiões normativas. Tendo em vista que boa parte do material a respeito de certos hábitos e práticas foram perdidos – principalmente pelo fato de que, culturalmente, as tradições sobreviviam via transmissão oral – buscamos fontes secundárias se desejamos reconstruir alguns aspectos da praxis.
Procuramos, então, discutir o hábito de agregar preces ao culto heathen dentro do pensamento indo-europeu, que é ponto de origem comum ao pensamento germânico na era pré-cristã, para em seguida transcrevê-lo dentro do nosso contexto.
Os antigos nórdicos possuíam mais de uma palavra para prece; no entanto, a mais comum parece ser biðja, derivada do Proto-Germânico bidjaną, significando suplicar, pedir, solicitar.
Como de comum ocorrência entre diversas culturas, germânicas inclusas, o culto se dá pela união de prosa formal e ação ritual. Combinando tais elementos, temos um meio para engajar no ciclo de presentes – prática fundamental dentro do pensamento heathen.
Watkins observa que dentro das sociedades indo-europeias, um poema religioso, invocação ou um hino de louvor aos deuses estão inextricavelmente ligados ao culto e toda a parafernália dentro do contexto de um ritual.
Paralelo a isso, Versnel traz uma investigação a respeito da mentalidade por trás da prece, onde é possível identificar uma estrutura comum envolvendo os elementos clássicos de uma reza entre os povos, incluindo pré-cristãos – em específico no nosso caso, indo-europeus. Temos então uma divisão clara entre invocatio, pars epica e preces, onde cada característica se mostra bem definida.
Abordaremos esta estrutura de prece reconstruindo seus passos de acordo com Versnel:
Invocatio: aqui direcionamos a prece a uma ou mais divindades por meio de epítetos ou descritivos. Muitas vezes os nomes eram relativos ao propósito das preces, como observado por Versnel.
Pars epica: aqui se fala a respeito do motivo da prece, as razões pelas quais ela deve ser atendida, explicitando a natureza da relação entre o praticante e a divindade. Esta parte pode manifestar um apelo à natureza benevolente que algumas divindades ocasionalmente demonstram.
Preces: consiste na conclusão da prece, reforçando as bênçãos pedidas às divindades, comumente seguida de um presente ou oferenda – em forma de oferendas físicas como comidas ou bebidas ou em forma de juramentos, que também desempenham papel devocional, entrando na categoria de presentes intangíveis.
Como mencionado previamente neste texto, são escassas as fontes a respeito de práticas religiosas dos antigos nórdicos; Eddas e Sagas – nossas fontes primárias usadas em estudos, juntamente com achados arqueológicos – narram histórias sobre deuses e heróis, mas quase nada se encontra a respeito de práticas religiosas per se.
Trazendo tal pensamento para o contexto nórdico, usaremos um exemplo pertinente, encontrado no poema Sigrdrífumál, que narra o encontro do herói Sigurðr com a valkyrja Sigrdrífa.
As primeiras stanzas são ditas por Sigrdrífa após ser despertada por Sigurðr. Ela pergunta quem ele é e o oferece uma bebida. Em seguida, recita as seguintes palavras:
Sigrdrífumál, st. 3-4
Não existe uma concordância entre acadêmicos a respeito da conotação exata deste pedaço do poema. No entanto, é intrigante perceber que esta é uma rara ocorrência onde o diálogo se forma em alguém se dirigindo diretamente às divindades em detrimento de diálogos de pessoas para pessoas ou de deuses para deuses.
Podemos perceber nas stanzas acima duas das três partes do que Versnel identificou no modelo de prece mais comumente usado entre as civilizações ao longo da história – invocatio e pars epica, invocação e solicitação, respectivamente.
É interessante observarmos também um excerto retirado da Hálfs Saga Og Hálfsrekka, onde Geirhildr firma um diálogo com Oðin – aqui chamado de Höttr. Ambas Geirhildr e Signý disputavam pelo trono ao lado do rei Alrekr, que o daria para quem fosse capaz de fermentar a melhor cerveja. Geirhildr então invoca a divindade pedindo sua ajuda e o oferece seu filho ainda não nascido. Oðin então dá a ela seu cuspe para fermentar a cerveja e os resultados saem em favor de Geirhildr.
“O rei Alrekr não poderia ter ambas como esposa, e disse que manteria a que fizesse a melhor cerveja para quando ele voltasse de sua expedição. Elas competiram pela cerveja. Signyn chamou Freyja, mas Geirhildr chamou Höttr. Ele a deu um pouco de seu cuspe e disse que em troca de ter vindo, ele queria o que estava entre ela e o tonel. E sua cerveja foi a melhor.”
Hálfs Saga Og Hálfsrekka, capítulo I
Apesar de não termos de forma explícita uma prece em estrutura poética, ao fazer a análise da narração podemos identificar todos os três elementos de Versnel presentes no diálogo que se deu entre uma pessoa e uma divindade – Geirhildr invoca a divindade, faz seu pedido e em troca, oferece algo de valor.
Sendo tênue a linha entre espíritos naturais, grandes ancestrais e deuses, podemos especular que as preces não se direcionavam apenas às divindades, mas também se estendiam aos ancestrais, divindades do lar e locais. De exemplo, podemos observar o caso narrado na Færeyinga Saga, quando vemos a presença de Þorgerðr Hölgabrúðr, que parece ser uma divindade ancestral, uma dís, um nome pouco conhecido quando falamos do panteão comum.
Considerando também o fato de que alguns deuses eram vistos como progenitores de certas linhagens, podemos entender então que o culto ao divino no antigo costume era focado nas esferas mais próximas da realidade.
Somando isto ao entendimento do costume em cima do qual as sociedades germânicas foram construídas, podemos observar que heathens arcaicos não concebiam a esfera divina como sendo algo categoricamente à parte da realidade física, estando esta intrinsecamente conectada à esfera metafísica.
Nos aproximamos então da ideia de que os povos germânicos, de fato, possuíam em seus cultos a prática da oração e que adotar tal prática na modernidade não seria, como erroneamente presumido, bagagem cristã.
Em conclusão, é válida a ideia de que a liminaridade da prece se faz importante dentro do contexto de um rito, exercendo um papel relevante na conexão entre o mundano e o divino.
Fontes:
Prayer in a Heathen Context, Of Axe and Plough
Faith, Hope, and Worship: Aspects of Religious Mentality in the Ancient World – H.S. Versnel
How to Kill A Dragon: Aspects of Indo-European Poetics – Calvert Watkins
Addressing Thor – John Lindow
Prayer: A Study in History and Psychology of Religion – Friederich Heiler
The Culture of the Teutons – Vilhelm Gronbech
Hálfs Saga Og Hálfsrekka, tradução livre
Færeyinga Saga
Sigrdrífumál, tradução em Inglês de Jackson Crawford; tradução livre em Português para o desenvolvimento deste texto.