O conceito de família na cosmovisão germânica e sua aplicação em kindreds modernos

Por Clarissa Roldi

Família: o conceito de laços de parentesco e sua aplicação em kindreds modernos

Texto por Clarissa Roldi 

É o comportamento natural do ser humano a busca por um grupo com ideias e comportamentos semelhantes. Afinal, podemos de fato perceber, ao analisarmos o decorrer da história, que as chances de garantir a sobrevivência individual são maiores quando encontramos tais indivíduos organizados em grupos. 

Ainda que na modernidade tal comportamento se apresente na sociedade de forma mais sutil devido ao fato da individualidade ter ganho espaço em detrimento do comportamento tribal nas sociedades ocidentais modernas, a necessidade de se agrupar com seus semelhantes ainda se faz presente. 

Ao falarmos de práticas relativas ao paganismo tribal, existe uma palavra designada para definir um tipo específico de agrupamento: kindred. 

Primeiro, vamos analisar etimologicamente. A palavra kindred tem sua origem no Inglês Antigo cynn, significando “família, geração, descendência, parentes, tribo” + rǣden, significando “condição, estado”. Ou seja, estar em um kindred seria estar na condição de família. 

Podemos concluir então, de forma generalizada, que kindred = família. Porém, para entendermos a estrutura e o funcionamento de um kindred precisamos entender o conceito de família para os antigos. 

Com a cristianização, tornou-se parte da crença comum o culto à um único deus, que dentro do monoteísmo é visto como um pai. Dentro desta perspectiva, aqueles batizados dentro da fé em que existe um único pai tornam-se irmãos, todos filhos deste único deus. Tornou-se, então, um costume padrão o conceito de “irmãos de fé”, ainda que estes não tenham convívio ou intimidade. Sendo esta uma religião modular, o conceito desta irmandade universal torna-se aplicável dentro da visão de mundo construída em cima de tal costume. 

No entanto, ao tratarmos de uma sociedade construída em cima de valores tribais, este conceito se mostra incoerente com seus costumes. Sendo tênue e quase inexistente a linha que separa o religioso do secular dentro da cosmovisão heathen, o conceito de “irmãos de fé” não poderia existir, visto que a fé se encontra intrinsecamente ligada aos costumes mundanos. 

Sendo assim, tanto o conceito de irmandade quanto qualquer outra relação de parentesco se torna de suma relevância dentro de uma sociedade tribal. Os laços dentro do kin, seja um parentesco herdado através do sangue ou adquirido por um juramento ou contrato estabelecem a hierarquia e direitos de herança, além de direitos e deveres relacionados à vingança e à honra dos indivíduos e da família.

Tais laços são mantidos através das relações de friðr. Manter a friðr é essencial para que as relações familiares se mantenham funcionais, tendo como consequência direta a funcionalidade da tribo como um todo. 

Tratando-se das práticas modernas, existe uma banalização no que se refere à formação de um kindred. Ao levarmos em consideração a cosmovisão heathen, concluímos que um kindred não deveria ser algo formado a partir de relações superficiais ou com único intuito de realização de celebrações em datas específicas, e sim um grupo comprometido a manter friðr e trabalhar em sua manutenção. Ao compararmos um kindred ao modelo atual de família (no que se refere à família de sangue), podemos observar semelhanças importantes referentes à obrigações tanto sociais quanto legais. Sendo assim, escolher pessoas com as quais se deseja fazer um kindred teria, talvez, um peso semelhante ao de escolher um parceiro (esposo/esposa) – alguém que você permite dentro da sua vida de forma plena para compartilhar os limites mais íntimos do mesmo innangarðr, com quem tem reais intenções de manter fortes laços familiares. 

Talvez seja relevante fazer uma distinção entre um kindred e um blótlag, sendo o último referente a um grupo que se reúne com o intuito de realizar cerimônias ritualísticas, sem as obrigações referentes à família. 

Mesmo que seja compreensível a busca por familiaridade, é importante ressaltar que o hábito adquirido por novos heathens de criar kindreds com completos desconhecidos banaliza um hábito cultural que se faz primordial dentro de uma sociedade e diminui a importância histórica de uma tradição de base. 

Ainda que não exista uma receita padrão para se formar um kindred moderno, é importante que as pessoas entendam o peso de um juramento e como as ações dos membros podem influenciar a sorte do grupo como um todo e que, de tal forma, criem discernimento ao se envolverem em tais práticas. E paralelo à isso, que não se tente assumir uma posição de parentesco ao referir-se a outros heathens como “irmãos/irmãs”, sendo tal ato considerado invasivo e um tanto desrespeitoso. 

Partindo do ponto de vista da abordagem reconstrucionista, podemos afirmar que, em linhas gerais, há um equívoco tanto na compreensão do que se refere à parentesco quanto na execução da formação de um kindred. Ressalto aqui a importância de se reformar o mindset moldado dentro da sociedade cristianizada, de acordo com a visão de mundo dos antigos germânicos. Podemos não estar presos a dogmas, porém não devemos ignorar o papel primordial do que, afinal, se faz a base dentro do paganismo tribal: tradição. 

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