O que Supernatural nos ensina?
“O primeiro selo será quebrado quando um homem justo derramar sangue no inferno.”
Com esta frase, somos apresentados ao grande plot de Supernatural, a série com uma audiência de mais de 300 milhões e incontáveis prêmios. Considerada uma produção renomada na cultura pop, a série se tornou febre e são poucas as pessoas que não a conhecem. Na semana de lançamento da quinta temporada, chegou a ocupar o primeiro lugar na lista de trending topics do twitter.
De primeira, podemos considerar que é uma série bem produzida – tem um bom roteiro, elenco talentoso e uma trilha sonora incrível. Podemos concluir que, de forma geral, é uma boa produção e que merece o status que teve em sua época de glória. No entanto, ao olhar atentamente a partir de uma perspectiva mais crítica, precisamos nos perguntar: qual a influência que Supernatural exerceu no processo de socialização dos jovens que a acompanharam?
Primeiramente, precisamos entender o conceito de socialização. Em suma, a socialização é o processo pelo qual aprendemos normas, regras e costumes de uma sociedade, de forma que consigamos nos conduzir em nossa convivência diária. Tal processo ocorre de formas diferentes para os diversos grupos que compõem a sociedade, e sua condução está intrinsecamente relacionada com o grupo do qual o indivíduo faz parte. Fatores como sexo, etnia, cor, classe social e nacionalidade exercem um papel crucial na forma como esses indivíduos serão socializados.
É importante ressaltar que a socialização é um pacto coletivo – ou seja, ela não acontece apenas a nível micro. Somos socializados pelos nossos pais, nossas famílias, nossos amigos, pela escola, e, claro, pela mídia. Todos os elementos e pessoas que nos cercam exercem a função de nos ensinar qual é o nosso lugar, quais papéis somos incubidos de exercer e como devemos agir para performá-los com maestria.
Quando analisamos produções midiáticas e de entretenimento – de filmes, séries e músicas, livros, programas de TV e até propagandas – percebemos como esses elementos vêm carregados das estruturas que reforçam tais papéis.
Em Supernatural, podemos ver com clareza a forma como a mídia, de forma sorrateira, busca moldar o pensamento de como deve ser a conduta de homens e mulheres.
Voltemos à frase inicial: “O primeiro selo será quebrado quando um homem justo derramar sangue no inferno.”
Na série, descobrimos que para abrir a porta de onde Lúcifer se encontra enjaulado é necessário quebrar 66 selos – que funcionam como “chaves” para a dita porta. Os demônios, determinados a libertarem seu mestre e dar início ao Apocalipse na Terra, desenvolvem uma trama complexa e bem elaborada para que consigam que o tal homem justo – que a princípio teria seu lugar no céu após a morte – seja levado ao inferno e lá corrompido. O homem em questão, à priori, seria John Winchester.
O retrato do homem justo
John é um homem comum, sem nenhuma qualidade particularmente excepcional. Serviu como fuzileiro na guerra do Vietnã e retornou aos EUA para trabalhar como mecânico. Conheceu Mary, com quem se casou e teve dois filhos. A vida de John é extremamente ordinária – e este é um fator importante: John é um personagem com quem é fácil se relacionar. Qualquer jovem adulto ou homem consegue se identificar com John Winchester, o homem de aparência e inteligência mediana que sustenta financeiramente sua família exercendo um trabalho comum. E por isso, John é lido enquanto um bom pai e um bom marido – um bom homem, um homem justo.
Após Mary ser morta por um demônio, ele se torna obcecado por vingança e assim entra na vida de caçador, na qual ele vive na estrada matando todos os tipos de monstros. A ocupação é vista como, de certa forma, nobre: “salvar pessoas”, é a justificativa por trás da escolha de abandonar duas crianças em motéis baratos pela estrada para que eles se criem sozinhos.
Dean e Sam, os dois filhos de John, tinham, respectivamente, 4 anos e 6 meses de idade quando Mary faleceu e John se tornou caçador. Os dois, desde cedo, tiveram acesso a armas de fogo e armas brancas, foram treinados para atacar, atirar e lutar. Em um diálogo com o irmão, Sam diz: “quando eu disse ao papai que eu tinha medo do monstro no meu armário, ele me deu uma arma. Eu tinha 7 anos, Dean.”
Sam e Dean passavam a maior parte do tempo sozinhos nos motéis de beira de estrada aguardando o retorno do pai. Dado o fato de que sua vida era na estrada, sua educação foi severamente comprometida, visto que sempre precisavam mudar de escola. Pelo mesmo motivo, nunca conseguiram ter amizades próximas ou duradouras. Ao irmão mais velho, Dean, foi jogada a tarefa de criar o irmão mais novo e ser amparo emocional do pai desde muito cedo.
No decorrer da série, nos deparamos com relatos dos irmãos e de outros caçadores sobre os comportamentos de John: um homem violento e obcecado por vingança; um pai ausente e negligente.
Este personagem, altamente relacionável, é, na história, o homem justo. O homem de bem. O bom homem. O que isso nos diz sobre a forma que estamos moldando o pensamento dos nossos meninos?
A mensagem passada reforça o pensamento de que a conduta violenta e negligente é parte crucial do que compõe ser um “bom homem”.
Para além disso, Dean, o filho mais velho, é reconhecido como “o bom filho”; obediente ao pai e leal àquilo que foi ensinado a ser – violento. Dean, além de ser viciado em pornografia e direcionar um tratamento extremamente misógino à mulheres, recusa-se a lidar com suas próprias emoçoes, recorrendo ao abuso de álcool, encontros com prostitutas e rompantes de raiva. Descobrimos na série que ele é o receptáculo ideal do arcanjo Miguel – o justo, o que vem para salvar a terra do terrível apocalipse.
Ao passo que, Sam, o caçula, vive o sonho de fugir da vida violenta e conturbada de caçador e ir para a faculdade, se casar e ter uma vida relativamente normal. Ele é, então, tratado enquanto o filho ingrato, mimado e desleal – o receptáculo de Lúcifer, o mal encarnado.
“Strippers, Sammy!”
Já de cara percebemos que no decorrer da série, não vemos nenhuma mulher representada fora dos padrões de beleza. A maioria das personagens femininas são brancas, magras e consideradas atraentes para a sociedade. Ademais, quando não estão sendo mostradas enquanto atrizes pornográficas, strippers e prostitutas, aparecem enquanto receptáculos para demônios – mentirosas, maldosas, não confiáveis e passíveis de ofensas como “vagabunda” e “vadia”.
Dean é claramente viciado em pornografia, trazendo o assunto com frequência. São diversos os episódios nos quais ele aparece fazendo comentários misóginos sobre mulheres, ou acessando “Busty Asian Beauties”, um site pornográfico voltado para fetiche em mulheres asiáticas. Dean chega a levar Castiel, o personagem que se apresenta enquanto “um anjo do Senhor”, para um clube de striptease, onde ele insiste que o anjo vá para um local privado com a dançarina.
Gabriel, outro anjo (no caso, arcanjo) também aparece em várias situações onde coloca mulheres em posições de objetificação, insinuando constantemente como suas aventuras sexuais são exóticas e diferenciadas. O próprio chega a enviar uma mensagem para os irmãos Winchester através de um vídeo pornô caseiro.
Lilith, “a mãe dos demônios”, sempre aparece tomando a forma de uma criança. Quando ela vai atrás de Sam, ela possui uma mulher adulta e diz: “é preciso mais do que um beijo para selar um acordo comigo” e o chama para deitar na cama ao seu lado, insinuando que para que houvesse um acordo, seria necessário um encontro sexual.
Ruby, um demônio, e até mesmo Ana, um anjo, se envolvem sexualmente com Sam e Dean, respectivamente. Maggie, outro demônio, apesar de não se envolver diretamente em relações sexuais com os protagonistas, entra em um jogo de flerte com Castiel onde ambos fazem insinuações pornográficas.
Entre as exceções, temos Lisa, uma das poucas personagens femininas da série que não é retratada de forma hiper sexualizada. É a única que consegue o afeto de Dean. Lisa é uma mãe solo, que se dedica exclusivamente aos cuidados com a casa, com seu filho e, eventualmente, o próprio Dean. Ele vai até ela após os eventos do apocalipse e tenta levar a tal vida normal; em meio aos pesadelos, estresse pós-traumático, alcoolismo e raiva apresentada por Dean, Lisa permanece ao lado dele fornecendo suporte, acolhimento e compreensão.
Mary Winchester – A Santa Mãe Maria
Mary Winchester. Da escolha de seu nome até seu figurino e a forma como ela é retratada e descrita por Dean e John, somos apresentados a mais um estereótipo do que se espera de mulheres: a santidade da maternidade. Mary é branca, loira, de olhos claros e, a priori, sempre aparece com roupas claras e modestas. Pinta-se um paralelo com a imagem da Virgem Maria, a santa mãe da mitologia bíblica. Mary é morta logo no primeiro episódio pelo “demônio de olhos amarelos”, o que impulsiona o início de toda a jornada dos Winchester ao longo da série. Mary é morta no quarto do bebê Sam, e depois descobrimos o porquê – Mary, anos antes, havia feito um pacto com Azazel (o demônio de olhos amarelos) para salvar a vida do seu parceiro, John. Mary não apenas se sacrifica figurativamente, mas literalmente, quando se coloca no caminho do demônio para tentar salvar seu bebê e acaba morrendo por isso.
Ao longo da série, Dean fala da mãe como um ser divino e perfeito – que cortava seu sanduíche exatamente da forma que ele preferia comer, paciente, dedicada e devota ao marido e aos filhos.
Os irmãos Winchester se deparam com um belo choque quando, na quinta temporada, voltam no tempo e descobrem que, na verdade, Mary Campbell (seu nome de solteira) é que vinha de um background de caçadores. Extremamente inteligente, ágil, esperta e uma excelente lutadora. A série surpreende a todos com a revelação de que Mary não era a santa mãe que até então víamos. No entanto, o que a série também mostra é o quão desconfortável Mary se sentia naquela posição e o quão desesperada ela estava por uma “vida normal” – casamento e filhos, a única opção apresentada enquanto parâmetro de felicidade para uma mulher.
Ao final da décima primeira temporada, Mary Winchester é trazida de volta dos mortos. Confusa e atordoada, ela fica um tempo com os filhos antes de decidir seguir seu próprio caminho.
Ao ver a mãe, Dean imediatamente cria expectativas de que teria de volta a mãe perfeita de suas memórias de infância, que cozinharia suas refeições favoritas e cuidaria dos serviços domésticos. Seu mundo inteiro vai ao chão quando Mary não corresponde a tais expectativas, e ele reage de forma agressiva em relação a ela. Em um diálogo, ele cobra que ela exerça seu “papel de mãe”, no que ela responde: “Eu vou sempre ser sua mãe. Mas eu não sou apenas uma mãe.” Neste momento, Dean parece ficar sem respostas e lhe dá as costas.
Mary corta seus longos cabelos loiros na altura do queixo, passa a se vestir com jeans, botas e camisa de flanela e volta na vida de caçadora, sendo uma das melhores e se destacando por suas habilidades de combate, e toda a imagem da mãe de porcelana é estilhaçada, assim como a versão idealizada que Dean tinha dela.
O que Supernatural nos mostra com a personagem de Mary é uma mulher extraordinária cuja ambição da juventude era a “vida normal e feliz” que a sociedade oferece a mulheres: um marido com características medianas e a vida de dona de casa e mãe. Ademais, nos mostra como é a expectativa em relação a como mulheres devem desenvolver tais papéis de esposa e mãe, idealizadas enquanto santas dispostas ao auto sacrifício. No entanto, para além disso, Mary também nos mostra como é o tratamento recebido quando mulheres “falham” em corresponder a tais expectativas sociais – com desprezo, que é o que ela recebe de Dean.
O que a mídia nos ensina, afinal?
A série, ainda que de forma indireta, pinta bem o retrato da performance ideal dos papéis sexuais que é esperado que sejam exercidos na sociedade: o homem de bem – trabalhador honesto e pai negligente; o filho obediente – misógino, alcoólatra e violento; o filho ingrato – que se rebela contra as violências sistemáticas e assume o papel do próprio diabo; e a esposa e mãe perfeita – submissa, complacente e modesta.
“Ah, mas é só uma série!”
A socialização não é um processo de lavagem cerebral que vemos em filmes; não colocamos nossos jovens amarrados em cadeiras e os adestramos como cães de briga. A socialização dos papéis sexuais ocorre dentro do sistema, quando damos às pessoas exemplos em cima dos quais elas podem se espelhar. Criamos personagens relacionáveis, mesmo dentro de histórias de ficção, para que estes passem a mensagem de comportamentos aceitáveis e inaceitáveis para cada um.
Aqui, é válido observar inclusive, a forma que é apresentado todo o material promocional da série: apenas homens no protagonismo, com olhares sérios e/ou empunhando armas.
Tornamos o processo, que em si é violento, suave e quase que indetectável. Violências sistemáticas são relativizadas, sendo apresentadas com um tom quase cômico, dessensibilizando a sociedade para tais problemáticas. O sistema, assim, cada vez mais, se fortalece.