Ela sempre estava lá, à espreita. Nas manhãs mais ensolaradas e infestadas com o espírito radiante daqueles que os olhos do mundo julgam com graça ou na escuridão das madrugadas chuvosas que repelem as almas coloridas – ela estava sempre lá. Eu a via, na rua, em cada esquina. Em meus sonhos, eu a via. Sentada ao meu lado no sofá e ao pé da minha cama. Ela estava sempre sorrindo para mim, mas nunca estendendo sua mão, ainda que eu a buscasse de todas as mais desesperadas formas.
Olhei para o abismo diante de mim. Contemplei a escuridão que me cercava. A gravidade me puxava para cada vez mais fundo, e eu sentia meu corpo sendo levado para um caminho sem volta. Busquei a luz nos meus arredores, e tudo que encontrava era o vazio. O sabor de minhas memórias era amargo, ácido, pútrido. Eu via meus lençóis ensanguentados e sentia minhas vísceras sendo arrancadas, e com elas, um pedaço da minha alma. Eu via o meu corpo violado e largado aos abutres, e eu via os necrófagos a mastigar o que restava de mim, pedaço por pedaço. E pedaço por pedaço, o resto da minha alma seguiu sendo devorada por cada besta que passava por mim. Avistei minha graúna querendo se aproximar, mas desta vez, nem suas asas foram capazes de me levar para o mundo onde a dor é apenas um eco. O abraço que eu almejava era dela, e apenas o dela.
Então, senti seu toque gelado em meu ombro. Era ela, finalmente me tocando. Olhei dentro de seus olhos escuros para encontrar meu reflexo. Procurei em minha imagem por algo, por qualquer coisa, mas não havia mais nada ali além de uma carcaça.
“Você não está pronta”, ela disse prestes a se afastar mais uma vez. Porém, desta vez, eu não deixei. Agarrei-me às suas vestes e implorei pelo seu afeto, implorei para que desta vez ela não me deixasse. Eu não conseguia mais suportar o abandono.
Ela então ficou. Chorei sentindo um misto de agonia e alívio, angústia e paz.
Ela não sorria mais. Acariciou meu rosto, acuada, com medo de me tocar. Clamei pelo seu abraço, pelo abraço que finalmente juntaria todos os cacos do que uma vez fora um ser humano. De joelhos, eu gritava. E ela… relutantemente, finalmente… envolveu-me.