Andava pelas ruas escuras tranquilamente, assoviando uma melodia. A ausência de vida, a umidade, a escuridão, ou mesmo o odor fétido do lugar não o incomodavam. Seus sapatos eram quase silenciosos ao pisar bruscamente nas poças d’água formadas pela chuva que caía fraca sobre seus cabelos. Podia sentir o cheiro dos humanos que por ali moravam, mas nenhum o atraía. Aqueles eram apenas humanos, sem nada de especial a oferecer além de seu sangue. E que, no final, era apenas sangue.
Vagava, sem saber ao certo que direção tomar. Qualquer direção, além daquela que desejava. Tentava ocupar sua mente com várias imagens, mas apenas uma se fixava diante de seus olhos.
Era a imagem de uma pequena criança de cabelos ruivos olhando para ele através da janela sob a fraca luz da lua minguante. Podia ver claramente o brilho dos olhos verdes a fitar a noite. E com o tempo, a imagem ia crescendo e a pequena se tornava grande. A face angelical e sonhadora adquiria um semblante sério e maduro ao passo que seu corpo miúdo moldava-se na forma de uma mulher.
Enquanto ele, ali sozinho, não mudara. Preso em um corpo congelado, pela eternidade.
Ao pensar naquilo, sentiu seu corpo gélido queimar com o desejo de tocar a pele suave. Seria sua pele ardente como a chama brilhante que emanava de seus cabelos? Como desejava descobrir… Tudo o que desejava naquele momento era poder se ver livre do pensamento que tanto o atormentava. E então, nada podia fazer além de resistir. Porém esta noite não mais podia fazê-lo. Apenas a mera lembrança do cheiro doce daqueles cachos traziam a ardência em sua garganta seca. A visão fantasmagórica e distorcida pela dor em seu âmago daquele rosto angelical o sufocava. E ele gritava, silenciosamente, apenas para seu próprio tormento.
E assim, correu. Correu sob o sereno, implorando para que sua dor fosse embora.
Mas ela não foi.
Seu corpo nunca estava cansado o suficiente para reclamar da dor física, deixando ela toda para sua alma. Teria ele uma alma?
Os mortos não têm alma. Os mortos não sentem, Por que então eu sofro? Por que então eu amo?
Não via para onde corria até alcançar a familiar casinha branca. Se destacava em meio às outras apesar de não possuir nenhum aspecto físico para diferenciá-la. Mas era o cheiro que emanava de suas portas e janelas que o atraía, assim como o medo atrai a loucura.
Escalou até chegar à janela mais alta e observou. Sentiu seu corpo sem vida se agitar, como uma injeção de adrenalina em suas veias. Suspirou. A mulher dormia tranquilamente, tendo seus sonhos habitados por uma criatura mística de olhos vermelhos que a observava durante seu sono. Por quantos anos aqueles olhos a assombravam? Em todas as vezes que fechava os olhos via aqueles estranhos orbes avermelhados a encarar sua expressão incrédula.
Nunca pôde os esquecer. E nunca pôde deixar de desejar vê-los ao menos uma vez mais.
Naquele momento, revirava-se entre os lençóis, inconsciente de que estava sendo observada. Observada e desejada.
E os olhos, famintos e sedentos, não perdiam nenhum movimento, por menor que fosse.
O vento soprou o cheiro em sua direção e ele inspirou profundamente.
O que sentiu invadindo suas narinas não fora apenas o odor do sangue tentador. Inspirara desejo, paixão. Loucura.
Foram anos e anos de resistência, e agora escolhia se afogar nesta loucura. Afinal, era simples.
Era apenas irresistível.
Adentrou o cômodo silenciosamente, sem desviar o olhar de seu objeto de desejo. Seus movimentos eram hesitantes, ainda que desejosos. Lembrava-se de cada noite que passara odiando a si mesmo por ter a fome, a sede. Por que desejava tanto aquele sangue, aquelas veias? Por que desejava aquele corpo, tão frágil e dócil?
Também era simples. Era um monstro.
Suas mãos gélidas tocaram, enfim, a pele quente. Sentiu-se em êxtase. Acariciou as pernas frágeis e levou suas mãos até os seios da garota. Ali pôde sentir o bater irregular de um coração afogado em desespero. Passou a mão pelo pescoço dela e sentiu sua garganta mais uma vez em chamas ao ver a veia azulada se destacando na pele translúcida.
Inconsciente de seus atos, ela se moveu de um modo a deixar aquela área ainda mais visível.
Por que, ele se perguntava, não posso tê-la? Por que não posso mudar, como ela mudou?
Era a fome ou o desejo latente? Ou seria fome e desejo, caminhando lado a lado?
Passou um de seus dedos sobre a veia pulsante, absorvendo o calor que dali emanava e ali deixou de existir. Não era matéria, era apenas instinto puro.
Umedeceu os lábios com a língua e depositou um cálido beijo que provocou arrepios no corpo quente de sua vítima. Os olhos verdes tremeram ameaçando se abrirem e os lábios rubros soltaram um baixo suspiro. Os instintos de monstro não mais puderam ser contidos, e só o que sentiu em seguida foi o gosto adocicado de sua loucura escorrendo pela ferida provocada por suas presas sedentas.
Seus olhos se reviraram ao sentir aquele prazer cair direto para seus lábios, descendo por sua garganta, aliviando sua dor. Sua sede. Ouviu um baixo gemido escapar dos lábios de sua vítima, mas não desejava parar. A dor dela nada significava para ele.
Por que poupá-la quando ele sofria? Por que dar a ela a dádiva da vida se a ele tal deleite fora negado?
Mas poderia olhar pela última vez dentro dos brilhantes olhos verdes e presenciar o desespero ali contido. No entanto, não foi o desespero que encontrou ao olhar. Foi o alívio.
Não havia brilho, este havia desaparecido com o tempo. E agora a vida também se esvaía daqueles olhos tão profundos, os olhos que ele passara tantos anos admirando. Ela se entregara, assim como ele. E assim como ele, também tivera seu desejo saciado; ver, ao menos uma vez mais, os orbes avermelhados que perseguiram seus sonhos por tanto tempo.
Enfim, ele havia sorvido toda a vida que ainda restava naquele pequeno corpo. Fitou-a, fria e imóvel. Como parecia serena! A imagem da morte o lembrou de anos atrás, quando ela ainda possuía aquele ar sonhador, aquele encanto de criança que agora havia sumido em sua forma adulta. E era simplesmente linda.
Em seus lábios, lambeu os resquícios do doce que há tanto ansiava. Então, tudo o que restava agora era o sabor amargo da morte.
Deseja sofrer qualquer tipo de tortura física, apenas para se ver livre de sua própria mente. As nuvens cor de vinho começam a se desintegrar, despejando gotas igualmente avermelhadas. Densas, Não são como água. Eu a deito em cima da poça cheia de sua vida e canto para que ela durma. Não a deixarei dormir sozinha. Estará em meio às cinzas as quais pertence. Eu afogo sua vontade de respirar, lhe tiro o amor e tudo o que lhe resta é a escuridão na qual ela se reconhece. Ela me pede para ir, para se libertar do frio que a corta por dentro, mas eu não a deixo. Não posso, não quero e não a irei deixar. Jogada aos pés da macieira, coberta com seu sangue e chorando por suas feridas abertas é como eu a admiro. Tranco a última porta aberta, seu último acesso à sanidade e jogo as chaves no abismo das bestas. Eu nunca mais a deixarei ir. Eu nunca mais a deixarei acordar. Não há como fugir de si mesma. Eu vivo em você, eu sou você. Este é seu novo lar. São seus esses tão adorados pesadelos. Brinque com eles, brinque comigo.