Nas antigas civilizações nórdicas e em muitas outras, trocas e contratos tomam forma de presentes. Teoricamente essas são voluntárias; no entanto, existe uma obrigação implícita de reciprocidade.
Do ut des (Latim) – literalmente dou para que me dês – descreve sucintamente como funciona o culto dentro do antigo costume germânico. À primeira vista há a impressão de que se trata de uma forma de propina ou troca obrigatória, o que não poderia estar mais longe da realidade.
Em contexto moderno frequentemente observamos o caso onde as religiões correntes criam uma visão de virtudes e valores não práticos para se alcançar o favor do divino; isso tem como consequência relativo desinteresse em engajar nessas atividades ou o vício da hipocrisia.
Há também correntes de pensamento que favorecem a oferta de forma corriqueira, sem nenhuma meditação; uma mera transação pelos serviços do ser que lhe favoreceu. Ambas as práticas supracitadas são populares e difundidas na cultura popular, o que cria relativa dificuldade para que o heathen possa de fato entender o ciclo de presentes como um todo.
Como visto no costume Islandês de equiparar sociedade à lei e, na ciência de que leis, costumes, virtudes e religiosidade eram peças centrais na definição da sociedade, é possível verificar que a manutenção dos costumes não só tinha valor em manter estabilidade social, mas possuía um caráter religioso.
Primeiro devemos examinar as características em que as trocas se dão no antigo mundo germânico – em especial, o contexto nórdico. Existem muitas modalidades de troca de presentes; quanto às suas características, as mais notadas são:
Obrigatoriedade de existência: Se a troca deve ou não ser iniciada de forma obrigatória – se ela é coercitiva.
Obrigatoriedade de reciprocidade: Se o recipiente do presente deve ser recíproco ou não.
Meditação sobre o valor: Deve esta ser uma troca independente de valor ou o valor dos presentes deve ser equivalente?
O Hávamál nos da uma algumas pistas sobre as características da troca entre os nórdicos antigos:
Vin sínumskal maðr vinr veraok gjalda gjǫf við gjǫfhlátr við hlátriskyli hǫlðar takaen lausung við lygi | Para seu amigoum homem deve ser um amigo e retribuir um presente com um presente. Um riso com um riso os homens devem se valer e falsidade por uma mentira. |
Hávamál, st. 42
Betra er óbeðiten sé ofblótitey sér til gildis gjǫfbetra er ósenten sé ofsóitsvá Þundr um reistfyr þjóða rǫkþar hann upp um reiser hann aptr of kom | Melhor não pedirdo que sacrificar em demasia,a dádiva sempre busca pelo pagamento;melhor não enviardo que desperdiçar em demasia. Assim Thundr gravouantes da história dos povos; de lá ele se ergueue voltou de onde veio. |
Hávamál, st. 145
Podemos extrair duas características principais destes versos: primeiramente, que existe a obrigatoriedade de reciprocidade explicita em “a dádiva sempre busca pelo pagamento” e “retribuir presente para com um presente”.
Quanto ao valor do presente, a segunda seção de stanzas nos diz que é melhor não presentear do que presentear em excesso, o que significa que só se deve presentear quando há expectativas de reciprocidade de mesmo valor.
Sabemos também que presentear em excesso pode ser visto como um ato de humilhação; tratando-se de reciprocidade obrigatória e equivalente, se o outro não possui algo equivalente, sua condição social e econômica não apenas é evidenciada, como ele também é humilhado socialmente por não retribuir.
Sabendo que a troca tem reciprocidade obrigatória e que estima equivalência de valores, qual seria então a função dela em contexto religioso?
É verificada a existência de uma consideração onde a troca imbui o objeto de um caráter sacro; existe uma transferência implícita de poder numinoso entre os participantes da troca de presentes, criando uma deficiência desta substância (chamada de mægin); no remetente existe então uma necessidade de retornar o favor.
A retribuição resulta em uma sinergia que favorece ambos os participantes; este poder se torna maior ao invés de se manter constante – como é de se esperar de uma troca equivalente. Se não há reciprocidade nessa espécie de troca, existe a consideração de que a teia do urðr force o recipiente a entregar algo de valor equivalente de alguma forma.
Apesar de não existir obrigação explícita, a aplicação deste valor se mostra essencial na prática.
A rigor, a reciprocidade obrigatória também se estenderia aos deuses; no entanto, os deuses não fazem parte do nosso innangarðr. Dizer o contrario é afirmar que estamos em pé de igualdade com eles e que a sorte deles flui livremente para nós e vice-versa, o que eliminaria a necessidade da existência de um ciclo de presentes à priori.
Lembramos que a palavra blót (de tradução ainda disputada) tem fortes indicativos de que sua raiz tem o significado em “fortalecer”, no caso, “fortalecer aquele que recebe os presentes sacrificados”. Partindo desta lógica é possível concluir que os deuses e outros vættir não precisam daquilo que oferecemos, mas certamente tem a ganhar com isso também.
Presentes não se limitam a objetos físicos podendo ser também intangíveis; a título de exemplo, presentear alguém importante muitas vezes tem como retorno o cultivar desta relação – uma demonstração de afeto tem como resposta a contínua presença da pessoa em sua vida pessoal.
No contexto religioso, mais especificamente no tratar de divindades, podemos verificar que a troca de intangíveis entre pessoas e deuses ou pessoas e vættir se dá por meio do estabelecimento de acordos – juramentos.
Em suma, o ciclo de presentes é um dos pilares da crença germânica e desempenha grande papel na sustentação das relações existentes dentro da comunidade, desde pessoas e outras pessoas até pessoas e outros seres. O ciclo de presente é um dos muitos ossos que sustentam o innangarðr e estabelece alguns termos para que possamos tratar com o útangarðr.
Fontes:
Ensaio sobre a Dádiva, p.3, O presente e a obrigação da reciprocidade – Marcel Mauss
Culture and History in Medieval Iceland: An Anthropological Analysis of Structure and Change, p.136-137, Hastrup.
Hávamál : tradução comentada do Nórdico Antigo para o Português – Elton O.S Medeiros