Era um dia comum na maternidade. Meu pé estava enfaixado depois de pisar em cima de um lego meio pontudo, meu celular estava perdido embaixo de uma pilha de roupa suja que já estava quase criando vida própria e o arroz queimava na panela enquanto eu corria atrás da criança que escalava a cômoda usando os puxadores como escadinha para pegar o borrifador cheio de álcool – que eu havia colocado no alto justamente para evitar que ele bebesse. Depois que o presidente – ops, a pandemia de Covid-19 – deixou o sistema de saúde ficar sobrecarregado, eu fiquei bem paranoica com essa coisa da criança se machucar. E ter uma criança de dois anos presa em casa já é difícil. Quando a gente ainda tem que se preocupar em dobro com potenciais acidentes, vou te contar…
Enfim, um dia super comum na maternidade. Claro que depois teve prato do almoço sendo arremessado ao chão e um tal de “não quero, não vou, não gosto” sendo dito em resposta a todas as sugestões que eu dava. E aí, meus amigos, depois de tudo isso… a criança surtou. Surtou. Eu fiquei sem entender qual tinha sido o gatilho para aquele surto – eu já havia percebido que estava sendo um dia delicado, então vinha pisando em ovos para que eu não fizesse algo impulsivo. Essa coisa de educar com respeito não vem de um jeito natural quando você passou a infância inteira com medo de levar uma chinelada de Havaiana cor de rosa. Haja terapia, medicação e estudo.
Então eu estava ali, segurando aquele grito clássico do “cala a boca e fica quieto” e tentando me conectar com minhas duas crianças – a que se jogava no chão e a minha interior. Eu não sabia dizer o que estava acontecendo de errado ali, muito menos meu filho de dois anos.
Toda tentativa que eu fazia para me aproximar era rebatida com um tapa, uma mordida e um alto e sonoro “NÃO”.
“Filho, quer colo? Quer abraço? Quer mamar? Quer a musiquinha da calma?”
A criança só berrava cada vez mais alto. Eu fiquei até com medo dos vizinhos acharem que eu estava espancando meu filho e chamarem o conselho tutelar, sério.
Quando ele começou a jogar coisas no chão e bater a cabeça na parede, eu precisei intervir. Segurei no colo, engoli toda minha frustração e falei bem baixinho que eu estava segurando para que ele não se machucasse. Mas foi aí que ele passou a berrar ainda mais alto – eu nem sabia que isso era possível. Parecia que o rosto dele ia explodir, de tão vermelho. Tinha uma mistura bem gosmenta de baba, meleca de nariz e lágrimas que se espalhava na cara dele – e consequentemente ia parar na minha roupa. Roupa esta que depois desse dia foi para o lixo depois que meu filho, em meio ao seu surto, puxou com força suficiente para rasgar de fora a fora. Não que ele possa levar todo o crédito por isso, eu estou falando de uma camisola surrada que já tinha suas marcas dessa guerra de dois anos e pouco.
Eu acabei soltando ele depois que ele abocanhou meu braço e deixou uma mordida que precisou de gelo para desinchar. Se eu tive vontade de meter a mão na cara dele? Claro que não… (cof, cof, jamais).
É aquela coisa. A gente lê sobre os malefícios das punições e sabe que bater em criança, além de crime, é uma covardia das grandes. Mas eu seria uma baita mentirosa se dissesse que a vontade não vem. Ela vem sim, e nessas horas a gente precisa quase que dissociar para não entrar no piloto automático da educação tradicional.
Minha cabeça estava a ponto de explodir e por dentro eu estava dando todos os berros que não deixava sair pela boca.
Eu devo ter ficado uns 10 segundos (que mais pareciam 10 horas) de olhos fechados massageando as têmporas e ouvindo aquela choradeira inconsolável do meu filho enquanto me sentia a pior mãe do mundo quando, do nada, chegou um silêncio absurdo. Não dava para ouvir nem o barulho do nariz cheio de catarro tentando puxar o ar.
Passaram-se todas as tragédias possíveis pela minha cabeça no milésimo de segundo que levei para abrir os olhos. Será que ele se jogou de cabeça na quina da cômoda? Será que ele engasgou e não consegue respirar? Será que ele pulou da janela? Será que entrou um sequestrador de crianças e raptou meu filho?
Mas meu filho estava super bem. Paradinho encostado na parede, com um olhar super concentrado. Ele nem me ouviu chamando o nome dele, parecia que estava em outra dimensão. Ficou assim por alguns segundos e depois deu a maior gargalhada. Correu com os bracinhos estendidos na minha direção, abraçou minhas pernas e disse sem um pingo de vergonha na cara, como se nada tivesse acontecido:
“Mamãe, troca minha fralda, eu fiz cocô.”
Eu caí na gargalhada, e ele me acompanhou. Eu acho que no meio daquele estresse todo meu corpo deve ter começado a produzir seu próprio THC como forma de auto defesa, porque eu não conseguia parar de rir. Eu finalmente entendi o conceito da palavra “enfezado”.
E vocês não tem noção da bomba atômica que essa criança soltou naquela fralda. Acho que nem Urânio consegue ser tão radioativo. Eu já tive que lidar com várias explosões de cocô quando ele era recém nascido – parece que eles esperam o momento em que a gente levanta as perninhas para limpar o bumbum na troca de fralda – mas aquilo foi uma coisa de outro planeta. Não era à toa que ele estava em agonia, a barriga dele provavelmente estava doendo um tanto.
E depois que ele tomou um banho e colocou uma fralda seca, foi como se nada tivesse acontecido. Comeu, brincou, mamou, pediu colo, dançou comigo na sala…
Eu fiquei bem feliz de ter segurado esse surto. Não que eu sempre consiga, tem dias que ainda sai uns gritos, e eu preciso trabalhar melhor nisso. Mas esse dia em específico, eu fiquei bem feliz mesmo. Meu filho só precisava fazer cocô, e não sabia exatamente como expressar aquele incômodo. É bem isso, né? Por trás de todo comportamento explosivo, existe uma mensagem que a gente precisa decifrar e nem sempre vai ser a coisa mais fácil do mundo. Fico imaginando o quão péssima eu teria me sentido se tivesse perdido a compostura nesse dia, e é a situação que sempre me faz refletir bastante quando estou a ponto de explodir – na enorme maioria das vezes, meu bebê só precisa de tempo para entender o que está se passando com o corpo dele. No final das contas, eles só precisam mesmo da nossa paciência e do nosso amor.
E desta experiência, ficou uma lição muito valiosa que sigo carregando quase como um mandamento solene: nunca mais servi feijão e repolho na mesma refeição.