Eu avistei o pássaro pela minha janela, olhando para mim através do vidro salpicado pelas gotas da chuva torrencial. Eu podia ver em seus olhos que ele não pertencia a este mundo ou a nenhum outro que eu tivesse conhecimento. Eu podia ver em seus profundos olhos escuros o reflexo da minha própria alma, perturbada e presa. Eu ouvi os gritos e o som das unhas arranhando as paredes ao redor, o choro cortante criando uma perfeita sinfonia que pairava entre a resistência e a conformidade. O pássaro abriu suas asas e olhou para o lado, como se estivesse prestes a voar de volta para a dimensão estranha de onde viera. Mas, em vez disso, apontou-as em minha direção e direcionou seu gélido olhar para mim. Por uma fração de segundo parecia que o tempo havia parado, e a graúna cantou. Uma melodia doce e infantil que poderia facilmente ser confundida com uma canção de ninar, não fosse o desespero por trás das notas.
Os gritos ficaram cada vez mais altos. Eles eram ensurdecedores e poderosos, embora também fossem silenciosos e acanhados, abafados como uma voz submersa nas profundezas de um obscuro oceano. Eu sentia a Terra se movendo e a gravidade me puxando. Eu queria fechar meus olhos, mas sabia que não podia. Então eu esperei. Esperei que aquela fração de segundo que parecia durar para sempre acabasse. Esperei que o tempo começasse a fazer sentido novamente. Esperei que o pássaro percebesse que não poderia me pegar através do vidro molhado.
Suas asas, entretanto, eram mais fortes do que o vidro agora completamente estilhaçado que antes me protegia de ser engolida por sua escuridão. Não foi nem gentil o suficiente para me anestesiar antes de me envolver em seu abraço frio e perfurante. Nunca me senti tão só, tão vazia.
Senti suas asas crescerem e se fecharem, me envolvendo enquanto suas garras se cravavam em meu peito, perfurando meus ossos. A profundidade de seus olhos refletindo os meus próprios veio de encontro a mim e naquele momento nos tornamos um.
Voamos para algum lugar entre memórias há muito esquecidas e nunca totalmente formadas, mas que, ainda assim, traziam à tona cada pedaço de sentimento como se fosse uma recente – e, talvez, ainda mais fortes e profundos. Fomos puxados para um espiral de sensações que nunca poderíamos, de outra forma, sequer considerar como humanas, tal era o poder sobre nossas mentes. A escuridão era embaçada e confusa, contando apenas com a fraca luz de uma tímida lua minguante, mas nada havia feito tanto sentido como agora. Percebi como me sentia confortável naquela parte semi silenciosa de lugar nenhum do mundo onde os gritos da minha alma ficavam cada vez mais distantes e de repente meu peito não doía mais. As feridas das garras do pássaro me aqueceram por dentro e consegui respirar novamente. Senti meu corpo ceder lentamente à escuridão, relaxando. Abaixei minha cabeça e devolvi o abraço do pássaro enquanto sentia meus olhos ficarem mais pesados ao passo em que meus lábios se moviam de forma a desenhar um fraco sorriso. Agradeci ao pássaro pela escuridão e me permiti mergulhar nela.
Vi imagens de lugares lindos e pacíficos. Eu senti em meu cabelo a neve que não me fez tremer e senti em minhas mãos o fogo que não me queimava. Senti o cheiro das estrelas que me lembrava grama molhada e toquei as nuvens que pareciam seda. Estávamos voando alto o suficiente para que o peso de nossos corpos se tornasse irrelevante. Nada fazia muito sentido, mas tudo estava exatamente onde deveria estar.
Os gritos finalmente cessaram e tudo que eu podia ouvir era a horrenda canção de ninar que tocava na minha cabeça através do canto da graúna, e era apenas isso que era-me permitido ouvir através da pressão que sentia em meus ouvidos. Eu podia finalmente fechar meus olhos. Então assim o fiz.
O pássaro afrouxou o aperto de suas garras e lentamente me soltou. Em seguida, beijou-me carinhosamente na bochecha e eu percebi que nunca antes havia sentido tanta bondade e amor. Mesmo quando ele bicou meu pescoço e arrancou um pedaço da minha pele, a dormência da escuridão criava a ilusão de que sua mordida era um afago há muito almejado.
A graúna cantou mais alto, como se para me impedir de ouvir a feiura do mundo, cantou mais alto como se para manter meus olhos fechados e preservar meu sorriso. Ela cantou para mim repetidamente ao longo dos anos. Ela voltou com suas enormes asas e ainda que seu abraço perfurasse a minha carne e penetrasse meus ossos com suas garras impiedosas e nada delicadas, minha alma encontrava-se seduzida pela calmaria de uma escuridão onde apenas sua canção era audível.
Ela voltou com a melodia que transbordava a melancolia de outrora e ressonava com a tranquilidade do agora. Às vezes mais alto. Às vezes de forma mais gentil. Ela voltaria vez após vez para me envolver no abraço daquela mesma escuridão e arrancar pedaços de mim. Ela voltaria mesmo que eu não tivesse mais pedaços para oferecer.
E embora todos os meus pedaços tenham sido levados por ela ao voar sorrateiramente sob a luz da lua, eu ainda escuto o canto da graúna.