Reverência no contexto germânico pré-cristão: o que dizem as fontes históricas?

Por Clarissa Roldi

Homem suevo em ato de genuflexão [Roma, est. 50~150 EC]

Em tempos modernos existe um grande embate quando falamos sobre o ato de genuflexão – assumir posição de reverência quando engajamos em ritual; mais especificamente, ajoelhar-se.

Na comunidade heathen atual existe uma tendência reacionária quando falamos em genuflexão. O posicionamento em relação à prática tende a ser: “nós não nos ajoelhamos diante de nossos deuses pois não os tememos”. No entanto, fica evidente que é uma clara reação aos atos devocionais cristãos, induzida, possivelmente, pela aversão às práticas que nos foram socialmente impostas e pela equivocada interpretação da ideia de liberdade que se tem a respeito do antigo costume.

Historicamente falando, não seria uma reação válida. O ato de prostrar-se diante de locais sagrados não é originalmente cristão nem Abraâmico e tampouco se limita a tais credos, podendo ser observado em uma série de variadas culturas.

É compreensível que novos heathens busquem se livrar de hábitos antigos enraizados pela bagagem cultural deixada por ancestrais mais próximos ao núcleo familiar, mas tenhamos em mente que reações diretas à religião e cultura comum – que normalmente pendem para o extremo oposto – tendem a ser apenas uma resposta emocional e historicamente incorretas.

Diante disso, fica claro que tendência reacionária não é um bom caminho quando se quer praticar embasado em reconstrução. Mas então, qual a perspectiva germânica quando falamos no ato de genuflexão? Vamos começar pelo maior pilar da cultura germânica: a sociedade.

A sociedade germânica não só era rigorosa quando falamos em costumes e leis, como também era altamente hierarquizada e centrada numa cultura de valores; ou seja, era inerente à cultura deles que pessoas não eram iguais, seja por motivos de valor agregado ou classe social. Era esperado que cada pessoa se submetesse às leis da tribo, inclusive leis que dizem respeito à etiqueta diante de um rei, um senhor, ou até um nobre menor.

A associação de deuses à nobreza é clássica e pode ser observada em muitas fontes primárias, como a saga dos Volsungos e a saga dos Ynglings. De fato, nobres germânicos frequentemente diziam ser descendentes de determinadas divindades, como é o caso da nobreza Sueca e sua alegada descendência do primeiro rei, Ygnvi (Freyr). Não somente, como deuses geralmente também possuem títulos que remetem nobreza e traduzem literalmente para “senhor” ou “senhora”, o que reforça a noção de que deuses pertencem a uma categoria social elevada.

Sabemos que existia uma forma adequada de se portar diante de pessoas de status maior, como a reverência em sinal de respeito, conduta imposta na sociedade através da lei. Sabemos também que o não cumprimento de leis era passível de proscrição.

A conclusão a que queremos chegar é: se o ato de se prostrar diante de um nobre (sendo este um humano) era a conduta esperada dentro da sociedade, com certeza o mesmo ocorreria tratando-se de divindades. Ajoelhar-se diante de deidades não conotava, necessariamente, temor, e sim, respeito – tanto pelo título e status elevado daquele o qual se dirigiam quanto pela lei.

É claro que nenhum argumento é bem embasado sem que haja pelo menos alguns exemplares históricos. Prosseguimos então com alguns exemplos mais conhecidos:

No manuscrito Flateyarbók, que contém partes da Færeyinga Saga (saga dos faroenses), Jarl Haakon, um poderoso rei, se prostra fervorosamente diante da deusa Þorgerðr enquanto faz suas oferendas:

Entraram juntos na casa, Haakon e Sigmund, e alguns homens com eles. Ali estavam muitos deuses. Havia muita luz passando pelos telhados de vidro da casa, de modo que não havia sombra em nenhum lugar. Havia uma mulher na casa em frente à porta, vestida em muitos adornos. O Jarl lançou-se aos seus pés e ali permaneceu por um longo tempo; e quando ele se levantou, disse à Sigmund que eles deveriam trazer uma oferta e colocar a prata diante dela. “E como sinal de que ela aceita nossa oferenda, que ela deixe o anel dourado que está em sua mão. Pois tu, Sigmund, terá sorte com este anel.”

Færeyinga Saga, capítulo XXIII

A saga de Kjalnesinga nos conta a respeito de um homem chamado Búi, acusado de falsa religião por Þorsteinn, já que Búi se recusava a prostrar-se diante das estátuas divinas. Em conclusão, Búi é sentenciado à proscrição, mas eventualmente retorna sorrateiramente para assassinar Þorsteinn:

Dizia-se que Bui tornava-se um rebelde à medida em que crescia. Ele não fazia sacrifícios e dizia que parecia emasculante se arrastar diante de ídolos (…). Þorgrim, o goði, observava de forma minuciosa aqueles que não faziam sacrifícios (…). Na primavera, quando Bui tinha 12 anos de idade, o filho de Þorgrim, Þorsteinn, tinha 18. Þorsteinn convocou Bui à Assembleia de Kjalarnes sob a acusação de crenças incorretas, e disse que era passível de proscrição permanente. Þorsteinn prosseguiu com o caso, e Bui foi sentenciado a ser permanentemente um fora-da-lei.

Kjalnesinga Saga, capítulo III

Contos de Ibn Fadlan a respeito do povo Rus se ajoelhando diante da estátua de um deus:

No momento em que seus barcos chegaram à doca, cada um deles desembarcou, levando pão, carne, cebolas, leite e álcool e dirigiram-se a um alto pedaço de madeira fincado no chão. Este pedaço de madeira tinha um rosto como o rosto de um homem e era cercado por outras pequenas figuras em madeira parecidas. Quando ele chegou à figura grande, ele se prostrou diante dela e disse: “Senhor, eu venho de uma terra distante, (…) E trouxe esta oferta”, deixando o que ele trouxe com ele em frente ao pedaço de madeira.

Ibn Fadlan and The Rusiyyah, tradução em Inglês por James E. Montgomery

Na Saga de Harðar e Holmverja, lemos sobre Þorsteinn “caindo” em frente à uma pedra ao deixar sua oferenda:

“Hann steig þá af baki og gekk ofan Indriðastíg hjá Þyrli og beið þar uns Þorsteinn fór til blóthúss síns sem hann var vanur. En er Þorsteinn kom, gekk hann inn í blóthúsið og féll fram fyrir stein þann er hann blótaði.”

“Ele então foi até Indriðastíg e esperou que Þorsteinn fosse ao templo onde costumava ir. E quando Þorsteinn chegou, dirigiu-se ao templo e caiu diante da pedra onde deixava seus sacrifícios.”

Harðar Saga og Holmverja, capítulo XXXVIII; tradução livre: Clarissa Roldi

O exemplar acima deste texto, de um homem suevo em ato de genuflexão, objeto arqueológico romano datado por volta de 50~150 da era comum

Uma outra observação que se faz interessante, no poema rúnico Norueguês, ao falar sobre a runa ᛋ – Sól (Sunna) – , a construção com o verbo lúta, que significa “curvar-se, reverenciar”:

Poema Rúnico Norueguês, st. 11; tradução livre: Clarissa Roldi

Lúta (lýt; laut, lutum; lotinn), v. (1) to lout, bow down (konungr laut þá allt niðr at jörðu); (2) to bow to in homage or worship
A Concise Dictionary of Old Icelandic, por Geir T. Zoëga

Como podemos observar, há evidências históricas para a prática de genuflexão. Não podemos presumir o que se passa na cabeça de nossas divindades, seja ela qual for, mas faz sentido que demonstremos nossa reverência pela posição deles, assim como os heathens arcaicos o faziam. Povos diferentes escolhem formas diferentes de implementar este ato ritualístico; muitos se jogam de corpo inteiro no chão; alguns levantam as mãos ao alto em sinal de submissão a algo que se encontra em posição elevada. Outros, como os germânicos, se ajoelhavam com um ou ambos os joelhos, como nos é contado através de documentos históricos.

Presumir que estamos em pé de igualdade com nossos deuses significa insinuar que não há motivo para engajar no ciclo de presentes e buscar o favor deles. Sugerir que somos iguais é deduzir que eles têm obrigações legais para conosco tanto quanto temos para com eles; é o equivalente a inferir intimidade com quem não se criou laços genuínos de irmandade – e sabemos bem que esse tipo de presunção era um grave insulto a qualquer heathen arcaico.

Não há como tornar uniformes cultos que, mesmo em seus primórdios, não eram homogêneos. Assim como nas antigas tribos, cabe aos membros de cada kindred determinar quais valores são válidos de se incorporar em seu siðr, sendo imprópria a tentativa de imposição de qualquer ideal.

Sejamos, no entanto, racionais em detrimento de reacionários; se temos convicção de algo e evidências suficientemente sólidas, é possível então embasar nosso argumento a favor de determinada prática. Associar ao culto heathen práticas impulsionadas apenas por UPG, seja por mero capricho ou para reagir de forma contrária ao que se tornou comum, não está congruente com o que o antigo costume tem a nos oferecer. Pouco nos restou a respeito da fé que escolhemos seguir, e reconstruir tal cultura de forma fiel e condizente com as informações que temos não significa cultuar as cinzas, mas sim preservar a chama que nos foi deixada.

Fontes:

Flateyarbók (Codex Flatöiensis), “Livro da Ilha Plana”

Færeyinga Saga, tradução em Inglês por F. York Powell – tradução livre para o Português por Clarissa Roldi

Harðar Saga og Holmverja, tradução livre por Clarissa Roldi de http://sagadb.org/hardar_saga_og_holmverja.is

Ibn Fadlan and The Rusiyyah, tradução em Inglês por James E. Montgomery – tradução livre para o Português por Clarissa Roldi

Culture and History in Medieval Iceland: An Anthropological Analysis of Structure and Change, Kirsten Hastrup

Culture of the Teutons, Wilhelm Gronbech

A Concise Dictionary of Old Icelandic, por Geir T. Zoëga

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